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A MORTE DA SENHORA CEGA

Jorge Matos

Por Jorge Matos em 09/09/2023 às 10:34:18
Foto: Freepik

Foto: Freepik

A MORTE DA SENHORA CEGA

(Peça em 1 ato)

Texto baseado no conto: "A Morte da Mulher Cega", de Ariovaldo Matos

Cenário: Pequeno apartamento quarto e sala com uma divisória que permita visualizar todo o espaço, exceto a cozinha. Uma porta dá acesso aos dois ambientes. No quarto, uma cama de casal, uma janela. Na sala, uma mesinha com várias garrafas de bebidas e copos, uma mesa, quatro cadeiras um sofá de dois lugares. Na parede do fundo, um grande quadro com um galo amarelo, roxa a moldura.

Personagens: Nilo, Sônia, Augusto e Carmen

Sônia, de pé, usando short e transparente blusa de pálido azul, olha para fora pela única janela.

NILO – (Sentado na cama) O que me intriga é que não sei onde li sobre a velha Senhora Cega...

SÔNIA – (Deixa de olhar pela janela, volta-se para Nilo) Senhora Cega? Não foi um sonho?

NILO – Não foi sonho, não é também imaginação. Eu li, com toda certeza, a lembrança terminará chegando...

SÔNIA – Provavelmente é só doidice...

NILO – Deixe de ser boba. Não, eu lí, com certeza. E não sou de doidices. Estes teus modos de falar às vezes são irritantes.

SÔNIA – (Voltando a olhar pela janela) Tem um cara de chapéu na esquina. Será que está nos vigiando?

NILO – Tolice Sônia, essa coisa de vigilância já passou. Hoje vivemos numa democracia, onde as opiniões são livres.

SÔNIA – (Volta a olhar para Nilo) Você insiste em escrever sobre o direito das pessoas, liberdade, essas coisas... De repente acham que você é um guerrilheiro... Há mesmo focos de guerrilheiros aqui em Salvador? Eu ouvi as pessoas comentando no salão...

NILO – Conversa fiada, boataria...

SÔNIA – Assim espero.

NILO – Já tenho na cabeça grande parte do filme sobre a Senhora Cega.

SÔNIA – Filme? Não sabia que você estava metido nisso de fazer filmes...

NILO – Não estou metido em nada. A ideia surgiu há pouco. O embrião das ideias está no que a gente lê, Sônia. No que a gente ouve, no que se vê. O importante é aplicarmos nossas ideias em favor do povo...

SÔNIA – Essa coisa de em favor do povo é que me dá medo. Quero ver se vierem lhe prender se vai aparecer "algum povo" aqui para impedir...

NILO – (Levanta-se da cama, faz gestos teatrais) Tente acompanhar: imagine um relógio ocupando toda a tela do cinema nas cenas iniciais. Um relógio a deformar-se, porque feito de cera multicolorida. A ele sobrepostos o título, que ainda não escolhi, o nome do escritor, eu, os nomes dos artistas principais... É um problema sério, esse dos artistas, mas eu resolvo. Eu penso mais e resolvo. Importante, Sônia, é criar! E em arte isso significa antecipar tempos a partir dos antes efetivamente vividos, razão e emoção em incessante luta para a conquista da melhor unidade. É saber que o futuro já começou, não cessa de renovar-se e está em nós, cumprindo-nos descobrir e também adivinhar suas substâncias essenciais. Entendes?

SÔNIA – Tô confusa, Nilo, mas você fala bonito. (Volta a olhar pela janela) Havia um homem de chapéu na esquina...

NILO – E daí?

SÔNIA – Parecia um agente federal, mas já se foi. Me conte mais do enredo do filme e não bote palavras difíceis.

NILO – Esforça-te para entender. Um pouquinho de esforço. Basicamente, a história é verdadeira. Eu li em algum lugar, acho que num conto de Maupassant...

SÔNIA – Viu, lá vem você com nomes difíceis. Esqueça os nomes, só o enredo...

NILO – É a história de uma idosa senhora que fora muito rica e empobreceu com alguma rapidez. Por causa de uma queda no mercado de ações. Antes, quando rica, era frequentada por artistas sofisticados, banqueiros, políticos, os habituais aproveitadores especializados em cortesias apuradas etc. Tornando-se pobre, foi abandonada em uma antiga mansão, agora quase aos pedaços, em processo de destruição.

SÔNIA – Como os pardieiros da Ladeira da Montanha...

NILO – Uma mansão, Sônia, uma mansão! Veja se entende: é como um pequeno castelo, com jardins em volta. Belos jardins, muito bem cuidados.

SÔNIA – Aqui em Salvador, mansão só se for no nome dos prédios: Mansão di Capri, Mansão Carlos Costa Pinto, tudo fajuto, mas o nome tá lá, mansão disso, mansão daquilo. Mansão de verdade, só vi no cinema.

NILO – (Nilo parece não dar atenção) Assim abandonada, cega, morreu deitada em antigo e ainda luxuoso divã...

SÔNIA – Divã?

NILO – Sofá. Morreu deitada num luxuoso sofá, o fiel Mordomo a assisti-la, fingindo que tudo continuava como antes. Tal mordomo, tão incomum... (Gritando) É isto, Soninha, o Mordomo: Genial, paixão, genial! Em tudo e por tudo, o Mordomo, de singularíssima personalidade, será o fio-de-Ariadne de toda a narrativa: entendeste?

SÔNIA – Fio de quem?!

NILO – (Demonstra estar alegre) Fio de Ariadne, tapadinha do meu coração...

SÔNIA – Quem ou o que é esse tal desse fio?

NILO – (Volta a sentar-se na cama) Ariadne ou Ariadna, segundo a mitologia grega é a filha de Minos, rei de Creta e de Parsífae, a rainha. Apaixonou-se por Teseu quando este foi mandado a Creta, voluntariamente, como sacrifício ao Minotauro que habitava o labirinto construído por Dédalo e tão bem projetado que quem adentrasse ao dito labirinto, não conseguiria mais sair e era devorado pelo Minotauro. Teseu resolveu enfrentar o monstro. Foi ao renomado Oráculo de Delfos para descobrir se sairia vitorioso. O Oráculo disse-lhe que deveria ser ajudado pelo amor para vencer o minotauro. Ariadne, a filha do rei Minos, lhe disse que o ajudaria se este a levasse a Atenas para que ela se casasse com ele. Teseu reconheceu aí a única chance de vitória e aceitou. Ariadne, então, deu-lhe uma espada e um novelo de linha, o tal fio de Ariadne, do qual ficaria segurando uma das pontas para que ele pudesse achar o caminho de volta. Teseu saiu vitorioso e partiu de volta à sua terra com Ariadne, embora o amor dele para com ela não fosse o mesmo que o dela por ele.

SÔNIA – Nunca é. O amor de vocês homens, cachorros, nunca é igual ao nosso. E a gente ainda fica perdendo tempo dando fio prá vocês sairem dos labirintos. Um dia as mulheres vão se revoltar e vocês vão ver com quantos fios se faz uma canoa...

NILO – Vamos ver o que?

SÔNIA – Isso mesmo, como é que se faz uma canoa.

NILO – Deixe de ser tapada, Soninha. Por que não lês nada, para aprenderes e me ajudares? Horóscopos idiotas é o que lês, horóscopos! (Aponta para a porta) Quero uma dose de cachaça, pura!

(Sônia dirige-se à sala onde está a mesinha com as garrafas, pega uma garrafa de cachaça e serve uma generosa dose em uma taça de cristal)

NILO – (Pegando a taça) Na taça de cristal, Soninha? Taça é para vinho, cachaça se serve em copo...

SÔNIA – Se fosse a tal de Ariadne, Ariene, Arielma, Arilma, você não diria nada, muito pelo contrário, ficaria se achando o último biscoito do pacote...

NILO – (Demonstando calma) Você sabe o que é um mordomo...

SÔNIA – Ôxe, Ôxe, Ôxe, pensa que eu sou idiota? Já vi mordomo no cinema. Mas não sei direito prá que serve... É como um garçon particular, né?

NILO – Acalma-te. Deita um pouco e fica atenta. Falo de um Mordomo especial, muito especial. Ouça-me com atenção na descrição dos mordomos especiais: (desce da cama e fala com gestos teatrais) usando trajes apropriados às estações do ano, eles chefiam o pessoal da copa e da cozinha. Inclusive, em certos casos, os motoristas e os jardineiros. Dispõe de confortáveis aposentos, dotados de televisão e o mais, em residências situadas no âmbito da propriedade senhorial. O meu Mordomo especial será alto, severo, enigmáticamente romântico. É fundamental fazer com que cada expectador, vendo-o em ação, diga-se: "Este homem fará algo que influenciará todo o resto da minha vida", repetindo famoso autor inglês cujo nome agora esqueço.

SÔNIA – Não é autor, dengo. É autora: eu. Foi o que pensei quando vi você. Onde foi que primeiro vi você?

NILO – Não interrompa, Soninha. Vejamos... No que diz respeito a (enfase) Desempenho: obedecendo, embora, aos patrões, os mordomos especiais são bem providos de compostura. Devem ser entendidos, hoje, guardadas as proporções devidas, como eficientes executivos empresariais. Seus locais de trabalho são as mansões, os castelos. Quanto a apartamentos, somente aceitam atuar nos muitíssimos amplos: dez, quinze aposentos, piscinas, salões de jogos...

SÔNIA – E ainda existem, Nilo?

NILO – Existem! Esses mordomos especiais não se embaraçam quando solicitados a dialogar em inglês, alemão, francês e espanhol...

SÔNIA – Brasileiro, eles não falam...

NILO – (Sem dar atenção) Têm conhecimentos diversificados sobre as melhores cozinhas do mundo e não menos sobre adegas. Tratando-se de (enfase) Relacionamento: no particular, esforçam-se por sugerir que os serviçais mais aptos - copeiros, faxineiros etc -, se perseverarem, e se homens, poderão vencer os degraus que conduzem aos vários patamares que antecedem a mordomia. Ou seja, serviçais hoje, mordomos amanhã. Um em 100 milhões. As mulheres estão excluídas.

SÔNIA – Não é moleza ser mulher. Lei Maria da Penha nesses filhos da puta.

NILO – A Lei Maria da Penha se refere aos espancamentos de mulheres...

SÔNIA – Discriminação. Não vou permitir que no seu filme tenha disciminação. Se vai contratar mordomo, tem que contratar mordoma também.

NILO – Direi, então, Soninha, que, tipicamente, esses especiais são uns putos.

SÔNIA – E umas putas...

NILO – (Nem percebe a intromissão de Sônia) Direi mesmo que são os chamados "farrapos do proletariado". Mas usam custosas fantasias e têm corpos e mentes luzidios. Bem, não é este o caso do meu Mordomo, desde que só à Senhora Cega prestará serviços e em condições excepcionalíssimas. Ele e a Senhora Cega se falarão o menos possível. Comunicar-se-ão de modo perfeito no interior dos silêncios e da candidez dos gestos, estes por ela adivinhados. E ambos, - e aqui o problema do ator e da atriz é extremamente importante! – terão que ser exímios em expressão corporal, mestres em mimos e não em momices.

SÔNIA – Fico tonta com suas palavras, tonta, tontinha! (Sai da cama e caminha pelo quarto) Boto a mão no fogo que esse Mordomo é você!

NILO – (Não dá atenção) Como fundo musical básico o tic-tac do relógio, aquele relógio que, no começo do filme, se dissolverá na tela quase por inteiro...

SÔNIA – Beem, faz muito tempo que relógio não faz tic-tac...

NILO – (Nervoso) Não interrompa! Como dizia, o relógio se dissolverá na tela quase por inteiro, um tanto retorcidos os ponteiros à medida em que a Senhora Cega esteja a morrer. Para ela a morte é uma necessidade que se faz, sem agonia ou dor: ela fora crédula diante de lisonjas; ela se apaixonara por clérigos traidores; ela amara desvairadamente virtuosos inexistentes; ela se descuidara de si mesma; e mais e mais, e tanto que, como a cigarra da fábula, julgava o outono algo irrepetível. A sobrevivência do Mordomo, arquiteto de fantasias monumentais, simbolizará a incessância do novo, gestando origens de um tempo em que a morte chorará de tristeza sempre que obrigada a cumprir suas inexoráveis obrigações. Um tempo em que já não seremos forçados a sofrer o ranço de todas as citações, a naftalina das frases lapidares, o ridículo da pose – e já não sei mais quem disse isto, mas alguém disse! Também este tipo de ditadura nos oprime, Soninha: não nos deixam ser simples professores do povo, homens comuns. Simplicidades como as tuas, no meio em que vivemos, nos seriam mortais. Os ciclopes "universitários" avançam.

SÔNIA – (Batendo palmas) Lindo! Lindo! Não entendi porra nenhuma, mas é lindo! Você jura, Nilo, que não vai se meter nesse negócio de guerrilhas?

NILO – Que guerrilhas? Eu lá tenho cara de idiota? Me dê outra dose. Não precisa usar a taça. Bote no copo mesmo... Pensando bem, talvez eu vá a umas passeatas contra os usurpadores...

SÔNIA – (Servindo a bebida) Nilo, já lhe falei que estou, com uma coceira estranha? Acho que é urticárie.

NILO – Acha que é o que??!!

SÔNIA – Urticárie, aquela doença de pele...

NILO – (Sorrindo) Urticária, tapadinha, não urticarie.

SÔNIA – Urticárie ou urticária, dá no mesmo, coça como a zorra... E você não precisa ficar nervoso por causa de uma doencinha de nada.

NILO – Estou brincando bem. Vem cá, me diga um nome para o Mordomo.

SÔNIA – Bota Lauro, o nome de um tio meu.

NILO – Não, Lauro é nome de corretor de imóveis...

SÔNIA – Ronaldo...

NILO – Jogador de futebol.

SONIA – Então bota Joselito...

NILO – Contador.

SONIA – Wanderley, com dáblio e ipisilone.

NILO – Isso é nome de comerciante, dono de farmácia.

SÔNIA – Jaime...

NILO – Isso, Soninha, ótimo nome de mordomo, James!

SÔNIA – Eu falei Jaime...

NILO – Pense comigo: preocupado em manter a Senhora Cega feliz, James esconde que ela está na bancarrota, falida, e promove algumas festas de arromba, porém falsas.

SÔNIA – Como assim, festas falsas?

NILO - James convida artistas, homens e mulheres, mais homens que mulheres... Todos artistas.

SÔNIA – Eu sabia...

NILO – (Com largos gestos) Os artistas, um a um desfilando diante da senhora Cega a repetir o ensaiado "Adoramos, senhora. Boa noite, bom repouso. Até o próximo sarau. Sexta-feira? Ótimo, maravilhoso". Não faltando falsos colunistas sociais, fotógrafos, eventuais personalidades estrangeiras. E na porta da mansão, findas as representações, James distribuirá aos farsantes, aos intérpretes, os envelopes contendo cheques e avisando: aguardem novas intruções. Não façam ruídos, a senhora começa a dormir no divã. Notaram quanto foi bela?

SÔNIA – Eu acho que esse Mordomo, o James, está apaixonado pela Senhora Cega...

NILO – Um dia James convida para uma das falsas festas o principal dos parentes da senhora Cega, o chefe dos primos e das tias. O nome dele poderá ser Romildo, nome de rato, e ele dirá a James: "O senhor se obrigou a esta loucura. Nós não pedimos, ninguém pediu que o fizesse. Agora que as especulações financeiras irresponsáveis a levaram à falência é que o senhor nos procura. Por que não éramos convidados para as recepções verdadeiras? Hoje, quando está cega e demente... Nesse momento James interrompe: "Não, ela não é demente". E o rato falará: "Demente e cega, financeiramente irrecuperável, é que o senhor nos procura. Por que?" Controlando a vontade de enfiar a mão nas fuças da ratazana, James dirá: "Meu apelo é humanitário, nada mais". Aí Romildo ratazana retruca: "Para que um de nós vá lá, naquele hospício exteriormente luxuoso. Para que ela ouça uma de nossas vozes, e logo a minha voz. É muito cinismo. Quem comprou seu carvão molhado que o abane". "O senhor nada perderia, sr. Romildo" dirá James. "Perderia meu tempo e compactuaria com uma farsa. Quer saber mais de uma coisa? Tanta morte nela, tão pouco dinheiro, só os vermes de terceira categoria mastigarão a carne da louca"...

SÔNIA – Esse James é um frouxo! Se fosse comigo já teria enfiado a mão na cara desse filho da puta!

NILO – Há milhões de Romildos a infestar o mundo... Boa idéia: a cara do sórdido Romildo na tela inteira, todo o rosto na imensa tela, rosto roxo, imagem congelada. Aproximação em zoom detalhando somente a testa e o queixo, olhos de coruja, o nariz, a boca. Total silêncio. Boca, lábios, excrementados lábios, abertura para o animalesco grito que dera em James: "Saia! Não somos loucos! Saia!". E o curso deste grito ecoando, a lente penetrando boca a dentro, destruindo dentes, véu palatino, amídalas, sangue quase a cobrir toda a tela panorâmica, sangue a se enegrecer, escuridão! E em segundos, uma Bachiana de Vila Lobos, luzes a se acenderem favorecendo um vermelho a esmaecer, e a surgir, arranhado, o rosto de James. A Bachiana deve ser a 5ª. James sufoca o rato até a morte. Depois, o corpo todo, imbatível, na sala da mansão – sem triunfalismo – na sala imensa, quase desmobiliada, limo nas paredes, escamas de madeiras nobres pelo chão, o divã de debruns dourados. Nele, deitada, a Senhora Cega, sua bela voz em pergunta: "Novidades, James?". "Sim, madame, conferi os dividendos das ações. Especialmente as do Banco do Brasil. Magnificos, senhora, resultados magníficos. Estão compensadas as outras perdas". "Há, eu estava certa. Encontraste o Romildo?" "Lamento informar, senhora, mas o sr. Romildo faleceu: gangrena na garganta".

SÔNIA – Boa, viu filho da puta!? Mexeu com o James, mexeu com o Nilinho, meu macho retado... E o que mais, Nilo? Continue a história. Já estava ficando excitadinha,...

NILO – Pela primeira vez, a senhora Cega chamará James de amigo. E o fará quando, uma hora crepuscular, estiverem no jardim da mansão. James a guiá-la a um passeio, a descrever o Sol da Meia Noite, admirado desde Keflavik até Estocolmo...

SÔNIA – Keflavik? Que zorra é Keflavic?

NILO – Não interrompa, Sôninha. Keflavic fica na Islandia e Estocolmo na Suécia. Deixe-me continuar: James fala do Sol da Meia Noite e continua o passeio no jardim praticamente morto, com exceção de canteiros de zebrinas, torênias, lírios-da-paz e prímulas. Pássaros, indispensáveis belíssimos cantos de pássaros. Isto é fácil de conseguir, desde que existem discos especiais, e aprenderá a identificá-los, nomeando as aves, um jeito de falar que a comova: Escutai, senhora, vossos amigos estão alegres. Eles vos saúdam". E ela, agradecendo: "Também te saúdam, amigo".

SÔNIA – Lindo, lindo!

NILO – Necessário um ator capaz de conter a emoção. De tal modo que o expectador lhe perceba o esforço.

SÔNIA – Convida o Fred, ele é um bom ator. Eu vi uma peça com ele: "elétrica"!

NILO – Electra, imbecilzinha do meu coração, Electra. E antes que você pergunte, vou dizer: é mais uma personagem da mitologia Grega, protagonista da peça de mesmo título, produzida por Sófocles, e em uma narrativa alternativa de Eurípedes. Electra é filha do rei Agamenon e da rainha Clitemnestra. Ansiosa por vingar a morte do pai, morto pela esposa e seu amante Egisto, a furiosa Electra leva seu irmão Orestes a matar a própria mãe.

SÔNIA – Em briga de família eu não me meto. Aliás, por falar em meter, a gente bem que podia...

NILO – Pera aí! Como eu dizia, é fundamental um ator capaz de conter a emoção. Fred não conseguiria isso. Ele é um poeta e os poetas são mais emoção que razão. Em todo o caso, como já disse, não contratarei atores profissionais. Eles são sempre eles, é o estrelismo. Lembro que De Sica pegou nas ruas de Roma os atores de "Ladrões de Bicicleta" e os de "Umberto D", pagando pouco, mas pagando. Profissionalismo em estilo novo, a massa bruta sendo modelada pelo mestre. Onde encontrar gente assim, disposta?

SÔNIA – Na agência de empregos? (Nilo caminha em direção a ela, sério, parece que vai dar um sopapo... Sônia fala, demonstrando medo) Desculpe!

NILO – (Abraça-a) Genial, Soninha! Irei à agência de empregos e serei meticulosíssimo na escolha de candidatos, comportar-me-ei como um selecionador exigente.

SÔNIA – É sério, você gostou?

NILO – Claro, adorei! Voltando ao filme: poderei, então, mas nunca esquecendo a Senhora Cega, discutir, mas não discursivamente, e sim preocupado em usar a ação, problemas como o da fome, do desemprego, do subemprego, fortunas colossais gerando outras fortunas colossais, sem intensificação de atividades econômicas. A inesgotável exploração da classe média pelos banqueiros...

SÔNIA – É isso aí, Nilinho, pau nos banqueiros!

NILO – Poderemos utilizar absurdos coloridos, dragões negros surgindo de mares violetas, desesperadas fugas de minhocas gigantescas, anjos e querubins em movimentos de medo, de pânico, James a enxotá-los. E, depois, vitorioso, a acomodar a Senhora Cega no dourado divã, acariciando-lhe o rosto, ajeitando-lhe os cabelos, querubins e anjos em todos os cantos, não trágico e sim bastante terno. Então, o tic-tac do infatigável relógio misturando-se com as canções. James, agora sozinho, desce as escadarias do jardim, zoons a mostrar pormenores do seu rosto, dor sem lágrima, impecável a compostura, nada que sugira platonismo idiota, aqueles lábios azuis em movimento e nos olhos bem negros a convicção de que fora fiel por amizade e não por servilhismo.

SÔNIA – Agora deu tesão mesmo. Vem cá meu divino, meu insuperável, meu touro indomável, minha insustentável leveza do ser...

NILO – Minha o que?

SÔNIA – Insustentável leveza do ser. É um livro...

NILO – Do escritor tcheco Milan Kundera, sei. Não sabia é que tu o leste. Bote mais uma dose. Depois dessa insustentável leveza, pode ser na taça de cristal mesmo...

SÔNIA – Você está bebendo demais, Nilo. Depois não guenta dar umazinha...

NILO – E no final do filme, a Senhora Cega devidamente morta, James recitará um poema:

"Corcéis negros, dotados da magia e do poder do gesto,

metálicos cavaleiros, senhora,

Dou-vos agora.

Em começo de ano com sangue e lágrimas construído,

E vos saudarão na primeira luz da primeira aurora.

Os primiciais orvalhos de Eden,

O inédito e indecifrável sorriso de Deus,

Manhã / luar quando no grande início se fez,

Tempos puros de visões trágicas,

Testemunhas da construção, do triunfo alcançado,

De novo são vossos, senhora,

Dou-vos agora.

Caminhai vosso espaço, olhai vossas flores, senhora.

Por que ainda esta hesitante espera,

Se acorrentar não vos acorrenta o Cronos?

Risos, canções, silêncios de mágoas despedidos,

Alegras anéis esculpidos em nobres pedras,

Mornas trilhas de eternas neves do sol,

Dou-vos agora. Não antes e nem depois,

Agora e para sempre, senhora.

O ser, sendo, do febril amor afinal descoberto,

Ânsia enlouquecida de querer, querendo-se,

Vos cegaram, também eles, os vermelhos sonhos.

E não vos habita o ódio. Antes, senhora,

Em vós o hálito doce, a terna mão amiga,

Mansas evocações, molduras para o belo memorizado.

Aqui, senhora, de volta, os vossos tudos.

Retirei-os do agressor, em campo aberto enfrentado,

E os devolvo, intáctos, formas e cores, como antes.

Aqui e agora, ei-los: corcéis negros, metálicos

Cavalheiros, as neves, belos caminhos em floração,

Mistérios dos inícios, tudo devolvido, intáctos.

Risos, canções, vossos hesitantes silêncios,

Tudo, senhora, tudo, nada esquecido, tudo!

E aqui, até minha última lágrima, senhora,

Eu a dou feliz, muito feliz, e dou-vos agora."

SÔNIA – Nilinho, não fique nervoso, por favor. Mas, me diga uma coisa, o que diacho é Cronos?

NILO – Mais um personagem da Mitologia Grega. Depois te conto a história. Tenho que digitar o esboço desse anteprojeto de roteiro cinematográfico, esboço que desejo promissor. Tenho que traduzir para linguagem cinematográfica tudo o que tenho imaginado, utilizando, sempre que possível, os flashes-backs que o cinema usa. Espero consiga fazê-lo com eficiência. De tal modo que os expectadores se transportem para o interior das cenas.

SÔNIA – Morta, a Senhora Cega, é aí que o filme acaba?

NILO – Não! Importa explorar mais o James. Sem a Senhora Cega, o que será dele? Podemos colocar em back a música "Ne me quitte pas" de Jacques Brel (pega um DVD com a apresentação e coloca para tocar em um telão e enquanto toca, lettering trará a tradução da letra). Preste atenção. Essa música foi escrita durante a separação de Brel e Suzanne Gabrielle (a música começa a tocar, cantada pelo autor e Nilo vai traduzindo):

Não me deixes.

É preciso esquecer,

Tudo pode ser esquecido

Que já tenha passado

Esquecer os tempos

Dos mal-entendidos

E o tempo perdido

Tentando saber como

Esquecer as horas

Que as vezes mataram

Com sopros de porques

A última felicidade.

Não me deixes

Eu te oferecerei

Pérolas de chuva

Vinda de países

Onde nunca chove;

Eu escavarei a terra

Eu escaparei da morte

Para cobrir teu corpo

De ouro e de luzes.

Eu criarei um país

Onde o amor será rei,

Onde o amor será lei

E você será a rainha.

Não me deixes

Eu te inventarei

Palavras absurdas

Que você compreenderá.

Eu te falarei

Daqueles amantes

Que viram de novo

Seus corações ateados;

Te contarei

A história daquele rei,

Morto por não ter podido

Te reencontrar.

Não me deixes.

Quantas vezes não se reacendeu o fogo

Do antigo vulcão

Que julgávamos velho?

Até há quem fale

De terras queimadas

A produzir mais trigo

Que o melhor abril.

E quando vem a noite,

Com um céu flamejante,

Vê como o vermelho e o negro se casam

Para que o céu se inflame.

Não me deixes.

Não vou chorar mais,

Não vou falar mais,

Eu me esconderei lá

Para te contemplar

A dançar e sorrir.

Para te ouvir

Cantar e rir.

Deixa-me ser a sombra da tua sombra

A sombra da tua mão

A sombra do teu cão.

Não me deixes!

SÔNIA – Lindo, lindo, maravilhoso! Mas eu acho que você não devia ter matado a Senhora Cega.

NILO – Eu não a matei. A Senhora Cega, no filme, tem uma idade em que a vida para de dar e começa a tirar... Sua importância no enredo já teria se esgotado.

Toca a campanhinha do apartamento, Nilo e Sônia saem da cama e vão para a sala. Sônia abre a porta. Augusto vai entrando sem ser convidado.

AUGUSTO - Cadê o gaúcho?

NILO – Isto é hora, Augusto? Não podias telefonar?

AUGUSTO – Telefonar porra nenhuma. Vim buscar vocês. Vamos tomar um porre fenomenal. Soninha, vá trocar de roupa, vamos sair...

NILO – Pera lá, companheiro...

AUGUSTO – Já baianou, gauchão? "Pera lá"? Não tem pera lá, pera aqui, nem pera acolá. Ganhei a causa contra a Petrobras, e nós vamos comemorar. Eu, você, a minha irmãzinha Soninha e o traste da minha mulher. Vamos jantar no Iacht Clube...

SÔNIA – Cadê a Carmen?

AUGUSTO – Está no carro esperando.

NILO – Não tô a fim de sair...

AUGUSTO – Eu sabia. Por isso mesmo que deixei a Carmen no carro. Assim você fica sem desculpas...

NILO – É complicado. Se você tivesse avisado antes...

AUGUSTO – O advogado nos avisou no final da tarde. Liguei, mas você não atende a porra do celular.

NILO – Nem sei onde deixei o dito cujo. Faremos o seguinte: tu chamas a Carmen e a gente vai comemorar aqui mesmo. Tu sabes que a Soninha, para se arrumar, leva algumas horas...

SÔNIA – Exagerado.

AUGUSTO – (Resignado) Para dizer a verdade, Carmen não estava mesmo a fim de ir em restaurante. Disse que não pintou o cabelo, vários fios brancos aparecendo, vocês sabem como é, né?

NILO – Mulheres, mulheres...

SÔNIA – Temos vinho, whisky e cachaça...

AUGUSTO – Vou chamar a Carmen. (Sai pela porta).

NILO – O que temos para tiragostar?

SÔNIA – Azeitonas, salame, ovos de codorna e queijos. Tem também um resto de lombo que sobrou de ontem. Esquento no microondas e tá tudo resolvido.

NILO – Se precisar, a gente pode pedir uma pizza...

SÔNIA – Vai precisar não, bem. Tem pão também. Combina com o vinho e queijos.

NILO – Bote três garrafas de vinho para resfriar.

SÔNIA – Pode deixar comigo. Você sabe que eu sou boa de cama e mesa. Aliás, o que eu queria mesmo é outra coisa...

NILO – (Rindo) Calma, tua hora vai chegar!

SÔNIA – Com juros e correção monetária, espero...

NILO - Você está se tornando uma rentista do sexo...

(Sônia sai por uma porta que liga à cozinha. Nilo arruma quatro taças de cristal sobre a mesa. Entram Augusto e Carmen).

AUGUSTO – Chegamos, vamos bebemorar!

CARMEN – Ganhamos a causa contra a Petrobras. Novecentos mil reais...

NILO – Parabéns!

AUGUSTO – A idéia era ir ao Yacht Clube, mas vocês não quiseram...

NILO – Fica para outra vez.

CARMEN – Eu me arrumei toda...

AUGUSTO – Aliás, tá mais enfeitada que jegue na Lavagem do Bonfim.

CARMEN – Você sabe que eu sou vaidosa mesmo...

(Entra Sônia)

SÔNIA – Oi Carminha! Fiquem a vontade, enquanto preparo o tira-gosto. Nilo, conta prá eles o filme que você está fazendo.

NILO – "Está fazendo" não, Soninha. Por enquanto, é só uma idéia.

SÔNIA – Vocês precisam ver. É uma Senhora Cega, professora de mitologia grega, que está prá morrer. Tem um mordomo apaixonado por ela...

NILO – Professora de mitologia grega? Quem disse isso?

SÔNIA – É minha contribuição para o enredo. (Sai da sala, entra na cozinha).

NILO – Não tem nada disso. Básicamente o filme é sobre uma senhora rica e cega que fica pobre muito rapidamente por causa de acentuada queda na bolsa de valores e seu mordomo que tenta fazer a senhora cega viver a mesma vida do tempo em que era rica. Promovia festas, saraus...

CARMEN – (Dirigindo-se a Augusto) Tá vendo, bem? Esse negócio de bolsa de valores é esparro. Já falei: vamos aplicar a grana da Petrobras em imóveis...

AUGUSTO – Imóveis? Novecentos mil reais mal dá para um apartamento de três quartos na Pituba, ou um quatro quartos no Cabula!

NILO – Calma minha gente. Vocês vão ter muito tempo para pensar onde aplicar o dinheiro.

AUGUSTO – É verdade que você pretende fazer um filme?

NILO – Tá tudo muito embrionário ainda. Foi só uma idéia que tive, baseada em algo que li não me lembro onde. Mas agora não é hora de falarmos nisso. Vamos tomar um vinhozinho e, como dizemos aqui na Bahia, jogar conversa fora.

AUGUSTO – Fiquei curioso. Qual a história do filme?

NILO – Para falar a verdade, por enquanto minha história não passa de uma grande interrogação. Quantos de nós acabamos sendo bombeiros, astronautas ou, no caso das mulheres, primeiras bailarinas? São os nossos sonhos de criança que em sua grande maioria não se concretizam. E isso não nos transforma numa multidão de fracassados. Esse filme, hoje, é o meu sonho...

AUGUSTO – Peraí, me explique onde você quer chegar.

NILO – Imagino que James, o personagem principal...

AUGUSTO – Não era a senhora rica?

NILO – Sim e não. Os dois são personagens principais. Mas a substância está mais em James, o mordomo da Senhora Cega. No fundo, James sonhava muito alto. Queria-se mais que um simples mordomo. Acho que ele gostaria de viver a vida dela, não por pretender-se rico. Aquele mundo luxuoso o fascinava, mas ele era honesto com a Senhora Cega.

AUGUSTO – Os personagens são seus. Você faz deles o que bem entender...

NILO – Não, os personagens têm vida própria. Eu acredito que na verdade a Senhora Cega sabe, ou desconfia, da real situação financeira em que se encontra. Parece-me que ela finge acreditar nas fantasias do James apenas para agradá-lo.

AUGUSTO – Se estou entendendo bem, o James finge uma situação econômica favorável para agradar a Senhora Cega e, por outro lado, a Senhora Cega finge que acredita nas embromações do James só para agradá-lo...

NILO – Não tenho certeza.

AUGUSTO – Porra Nilo, você está ficando é doido!

NILO – Foi o que disseram do George Lucas quando ele apareceu com a trilogia "Guerra nas Estrelas". Ou a Gláuber quando filmou "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Não penso em escrever sobre a realidade. Transgredir meus próprios limites me fascina. Ademais, saiba ou não do que se passa, a Senhora Cega transborda uma beleza trágica. Algo assim como a música de Jacques Brel, "Ne Me Quitte Pas". E essa música será o mote da vida do James após a morte da senhora cega. Um hino à trágica separação.

AUGUSTO – E o final?

NILO – Talvez não haja um final. Às vezes me pergunto se eu não deveria escrever logo o fim. Mas a história não me conduz a um final. O que pretendo escrever não será absorvido por mentes de cálidos requintes. Que se fodam. Pouco me importa se sairão dos cinemas criticando o filme. Eu quero é que se lembrem da Senhora Cega e principalmente de James, o bombeiro/astronauta/primeira bailarina que jamais apagou um incêndio ou viu estrelas brilhantes de perto ou foi entusiasticamente aplaudido ao fim de um espetáculo. Mas que fez o seu melhor por um sonho.

AUGUSTO – Tudo bem. Então escreva tudo sobre o James.

NILO – Não é fácil. Terei que inventar uma pessoa, que a partir de então estará tão vivo quanto eu ou você...

AUGUSTO – Bem, deixe o filme para depois...

CARMEN – Onde você investiria novecentos mil reais, Nilo?

NILO – Em algum negócio que criasse empregos. Uma lanchonete, um barzinho talvez. Não sou muito bom em investimentos. Aliás, não conheço um jornalista que seja bom investidor. O importante agora é não ter pressa, planejar... E não esquecer que a ambição pode nos levar a um lugar muito escuro, desolado, à cegueira!

AUGUSTO – Cegueira?

NILO – Metaforicamente falando...

AUGUSTO – Claro. Temos é que conversar bastante... Isso mesmo, saber ouvir, refletir depois, é o começo do fazer.

(Sônia volta à sala com uma bandeja e uma garrafa de vinho)

SÔNIA – Vamos sentar, gente. Dei uma resfriada no vinho. Segundo Nilo, não devemos gelá-lo, só resfriar. (Serve o vinho).

AUGUSTO – Apesar de não combinar com o clima de Salvador, um vinhozinho cai bem mesmo.

NILO – Não existe esse negócio de combinar com o clima. O vinho é bebido em vários países de clima quente, como em algumas regiões da Itália, da Espanha, da Grécia.

SÔNIA – Só não pode dirigir depois.

AUGUSTO – Já combinamos. Hoje a Carmen dirige.

CARMEN – O velho machismo sempre se impõe. Mas o que importa agora é comemorar os novecentos mil reais que ganhamos da Petrobras.

SÔNIA – Em tempos de crise econômica, bem que essa graninha vai ajudar bastante...

CARMEN – Foram quase oito anos de espera. A nossa justiça é mais que lenta...

AUGUSTO – Mas agora não cabe mais apelação. Vão ter que pagar.

SÔNIA – Vamos fazer um brinde...

AUGUSTO – Sim, àquele galo amarelo (aponta o quadro na parede). Que um dia ele saia voando...

NILO – Para mim, esse galo é um frouxo.

SÔNIA – Pois para mim ele se parece com você. Viril...

NILO - Eu não pareço com este galo covarde que se permite prisioneiro de moldura roxa. Vil galo amarelo, traidor de minhas esperanças. (Gestos teatrais) Eu sou um pássaro, imenso pássaro vermelho. Passaro que nem o sol pode queimar.

AUGUSTO – Calma que o Brasil ainda é nosso!

NILO – Como assim nosso? Vivemos irremediávelmente atrelados, quase escravizados, pelos grandes conglomerados financeiros do mundo.

AUGUSTO – Não dá para viver fora desse sistema.

NILO – Daria, não fosse o povo brasileiro igual àquele galo amarelo!

AUGUSTO – Não tem como remar contra a maré. Ademais não acho o povo brasileiro tão frouxo assim.

SÔNIA – O problema do Brasil vem desde 1500...

NILO – Aí eu concordo. Nesses mais de cinco séculos o Brasil foi construído com genocídio, escravidão e destruição do meio ambiente.

SÔNIA – Tenho medo dessas conversas de Nilo. Afinal, convenhamos, vivemos momentos de transição política e tudo quanto se refira a segurança nacional merece o sigilo indispensável, sem o que retornaremos aos tempos da baderna: greves, inflação, corrupção, guerrilhas, os comunistas russos, os cubanos e os chineses mandando e desmandando no que é nosso.

NILO – Bobagem. Essa história de comunismo é balela. Conversa mole prá boi dormir. O comunismo acabou após a queda do muro de Berlim. Hoje, a própria Rússia é capitalista. A China, vive em um comunismo de araque...

AUGUSTO – Os americanos, ingleses e israelenses venceram a tal guerra fria. Não há como afrontá-los.

NILO – Aí tu vais me permitir discordar. Eles não venceram ainda não. Podemos resistir. E eu sei que eles podem, e no final serão vencidos. Recordem-se dos ontens da humanidade e dos seus próprios ontens. E façam comparações. Antes eles reinavam sozinhos, hoje, se detêm grandes somas de poderes, nem todos podem ser usados. E sabem disso e sabem que nós sabemos disso! Porque se destruíriam também. Este é o tempo das insolências.

AUGUSTO – Você devia publicar um artigo no jornal mostrando os caminhos...

NILO – De nada adiantaria, nossos leitores são medíocres. Os melhores escravos são aqueles que o são, e não sabem e não querem saber.

SÔNIA – Vamos mudar de assunto. Carmen está muito calada. Vamos falar de amor...

CARMEN – Isso mesmo. É de mais amor que o mundo está precisando.

AUGUSTO – Sei não. A situação piora a cada dia. Iraque, Siria, Israel, Iran, Afeganistão... É como se Deus, nem acesso de raiva, decidisse acabar o mundo.

NILO – Na verdade Deus não tem nada com isso tudo. Somos a continuidade do que fomos ontem e do que foram os nossos do passado. Não mudamos em nada. Tem gente que acha que a cura da celulite é mais importante que a cura do câncer.

CARMEN – E não é? Você não prefere a Soninha assim, toda lisinha?

NILO – Tu estás enganada, a beleza me envolve, mas não me faz servi-la. Entontece-me, mas não me embriaga, alça-me para além das circunstâncias, mas não me cega para o real.

SÔNIA – Puta que pariu, Nilinho, hoje você está demais. (Puxa Carmen pelo braço e se sentam no sofá. Conversa com ela em voz baixa, inaudível aos espectadores. Nilo e Augusto permanecem na mesa).

AUGUSTO – Fale mais do filme. Fale da Senhora Cega...

NILO – Sim, ela fica cega e pobre e o mordomo continua a manter as aparências... Coisa do capitalismo contemporâneo, no qual a imagem supera o bem estar. O capitalismo tornou-se uma força que a tudo devora no seu inconsequente caminhar. As pessoas se tornaram descatáveis. Apenas o lucro importa.

SÔNIA – Em nome do amor... (Sônia se dirige a Carmen, agora em voz alta) Entendeu, Carminha, tudo em nome do amor... (Continua falando com Carminha, em voz baixa, sem que a platéia a ouça, apenas os gestos)

NILO – (Aparenta estar afetado pelo álcool) Tudo em nome do amor, isso que não existe, coisa inconstituinte do real. O amor só existiria, admito, se Voltaire reinasse em todo o planeta: ele não perdoou madame Chatélet que o corneou? Ela morrendo e ele perdoando... O perdão é fundamental para a boa convivência das pessoas. Voltando a Voltaire... Ele foi um porreta, uma exceção que pode se repetir aqui, pois o mundo é uma convergência de erros planejados por Deus. A culpa não é nossa, é do planejamento celestial. Que me perdoem os demasiadamente católicos, mas eu me tornei um "socialisteiro", como se possível fosse existir socialismo numa terra que tem Baixa dos Sapateiros e onde Carnaval começa na quinta e vai até a quarta...

AUGUSTO – Sem falar nas festas de largo, nas lavagens... E viva o Carnaval, ópio do povo...

NILO – Por falar nisso, sabe como é que se diz Carnaval em francês? Chienlit... Esses franceses são todos uns merdas. Já pensou, ir para a avenida Sete pular Chienlit?

AUGUSTO – Ces"t la vie!

NILO – Na verdade a vida é uma porra em dó maior. A vida é um ato de tragédia e só! E eu envelhecendo... Cadê a gloriosa revolução que não nivela as idades e nem padroniza a cor da pele, timbre de voz, postura?

AUGUSTO – Isso me soa a racismo.

NILO - Racismo uma ova. Padronizar no sentido de igualar direitos, não na forma, ou cor!

AUGUSTO - Jamais! Viva as diferenças!

NILO - Não sei se me expressei mal, ou você é burro mesmo...

SÔNIA – (Falando bem alto) O quê?! Nunca lhe deu alegria, além do gozo sexual mecânico, habitual? Você nunca desejou se arrastar pelo chão para beijar pés, pernas, tudo do homem amado? E com a certeza de que ele faria o mesmo?

NILO – Que história é essa, Soninha?

SÔNIA – (Percebe que falou alto demais) Nada, conversa de mulher... Eu falava da condição de ser mulher.

NILO – Esse é um assunto pertinente. Tenho raiva das mulheres que se deixam escravizar por maridos e filhos...

AUGUSTO – Filhos?

NILO – Sim, os filhos são os piores escravocratas do lar. Exploram as mães que, de forma absurdamente imbecilizada, se sujeitam à suas chantagens emocionais.

SÔNIA – Eu conheço uma que é assim, Noêmia. Vive em função do marido e de dois filhos. Anulou-se completamente em nome do "amor maternal". Não vive, vegeta, sempre explorada pelos três monstros... Um dia ainda vou dizer na cara dela: revolte-se, imbecil! Mande-os à puta que os pariu!!!

NILO – Muito bem Soninha! Um viva à revolta das fêmeas transformadas em capachos onde seus maridos e filhos pisam sem dó nem piedade!

(Sônia volta a falar de forma inaudível com Carmen).

AUGUSTO – Nilo, eu não falava sério quando me referi ao racismo.

NILO – Eu sei, ambos entendemos a servidão. E quando falo de servidão, penso na servidão do mordomo da Senhora Cega...

AUGUSTO – A mim, parece mais bondade que servidão.

NILO – Analisando criticamente a Senhora Cega, parece que ela só pensa em coisas luxuosas e extravagantes. Cega, imagino que ela tenha gasto fortunas, de um lado para outro, em busca de cura, uma cura que só poderia acontecer por milagre.

AUGUSTO – Você fala como se ela fosse uma pessoa real, e não cria da sua imaginação.

NILO – Na verdade ela é real. São milhões de "senhoras cegas" que habitam o mundo. São pessoas cegas pelo poder do ouro.

AUGUSTO – (Gestos teatrais) "Ouro, o rufião internacional dos povos". Outro dia ouvi esta frase ser dita em uma peça de teatro...

NILO – Ouro para luxo, dissipações, ilusões. Quanto ao James, nele, de fato percebe-se ser possuidor de bondades. Dessas bondades que, se a gente estimula, a tal bondade se afirma, se impõe. Mas, mesmo que todas as bondades se reúnam, nunca conseguirão extinguir as maldades que há em nós...

AUGUSTO – O altruísmo precisa superar o individualismo, isso é fato. Mas, voltando ao filme, então seria correto afirmar que James poderia se arruinar pela ambição do dinheiro?

NILO – Como todos nós. A busca incessante pelo dinheiro, e dinheiro para gastos vulgares. A realidade social está sendo semiologizada. Mas o que arruína mesmo é a falta de amor.

AUGUSTO – Mas, desse mal, parece-me, o James não sofre.NILO – James, se não chega a ser santo, é completamente incapaz de ódios.

SONIA – Ninguém é incapaz para o ódio...

CARMEN – Por falar em ódio, vocês viram, o valor do aluguel vai aumentar em quase 30%.

SONIA – Aluguel é o mínimo, o gás foi o primeiro a subir. Depois a gasolina, e aí, liberou geral!

NILO – (Divertido) Cuidado, Soninha, isso é coisa de comunista...

SONIA – Eu, comunista? De jeito nenhum, estou com Jesus Cristo e não abro!

AUGUSTO – Mas não foi Jesus Cristo o primeiro comunista da história?

CARMEN – Esconjuro, Augusto, para de falar besteira...

NILO – Minha gente, essa história de comunismo é bobagem. Já não existem mais comunistas, pelo menos não como eram antigamente. Necessário, hoje, é aproveitar o que há de melhor em ambos os regimes, tanto o comunismo quanto o capitalismo...

AUGUSTO – E vamos lançar o novo regime: (gestos teatrais) o regime tropicalista dos últimos dias...

SONIA – E botar prá fuder com os banqueiros.

AUGUSTO – Desde que o banco dele não seja patrocinador do filme (novamente gestos teatrais) A Morte da Mulher Cega.

NILO – (Para Augusto) Tu levantaste um tema legal, e eu não vou correr do desafio. Jamais aceitarei patrocínio de bancos às minhas obras.

SONIA – Por que Nilinho?

NILO – Tu não percebes, os bancos são os maiores produtores de senhoras cegas no Brasil, e no mundo! Eles que tentam abafar os nossos sonhos...

SONIA – Como assim, Nilinho?

AUGUSTO – Essa eu decifrei: ele quer dizer que os bancos incentivam o rentismo...

SONIA – Agora entendi tudo. A Senhora Cega foi enganada pelos banqueiros e por isso foi a falência.

NILO – Foi iludida pela sua própria ganância... Novamente o ouro...

AUGUSTO – O rufião dos povos...

CARMEN – E quanto ao dinheiro que ganhamos do processo contra a Petrobras?

AUGUSTO – Vamos montar uma lanchonete!

(Em back ouve-se a musica "Amanhã", na voz de Caetano Veloso).

FIM


Se você gostou do texto, o que demonstra um péssimo gosto, ajude o João das Botas com qualquer valor através do Pix 71994062444 (Lara Castro Matos) ele argumenta que precisa trocar os óculos.
Ass: O Editor

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