Havia algo estranho em Zinho naquela noite. Costumava passar em minha casa, na Pituba, às sextas feiras para irmos ao Rio Vermelho perambular, entre goles, tira-gostos e paqueras; estas, quase sempre improdutivas.
Quando chegou, pouco antes da meia noite, Zinho trazia um visível abatimento nos olhos. Havia sido despedido do emprego de repórter no Jornal da Bahia há uns três meses e até então nenhuma perspectiva de emprego novo. Chegou, me chamou para sair e foi logo falando:
- A vida é um palco de tragédia, e só. Tragédia de um ato, que passa num zastrás inconsequente. Está estabelecido o roteiro e nós o seguimos. Quando acordamos, descobrimos que o cultivo do chuchu é o que existe de mais importante...
- Porra, Zinho. Deixe de falar besteiras. A vida é linda. Tem a Telma, a Zezé Boqueirão, o boteco do Bahia... sem o boteco do Bahia e as prostitutas, aí sim a vida seria uma longa e monótona plantação de chuchus. Vamos, - insisti. A gente pega o ônibus e vai pro Rio Vermelho. O boteco do Bahia ainda está aberto. Lá a gente toma umas três doses de gengibre e vai esperar o sol nascer na praia.
Zinho não respondeu. Caminhou para o ponto do ônibus e lá ficamos, em silêncio, até a chegada do 'buzu'. Disse "em silêncio", mas não foi bem assim. Zinho resmungava baixinho palavras ininteligíveis. O ônibus demorou menos que eu esperava e embarcamos. No banco de trás, o último, um casal abraçado. Mais uns três bancos à frente dois rapazes conversavam sobre futebol. Outras poucas pessoas em outros bancos não mereceram minha atenção. Zinho se dirigiu ao cobrador, pagou as duas passagens e perguntou:
- O senhor é especialista na cultura de chuchu?
- Não senhor – disse o cobrador. Não entendo nada dessas coisas.
Zinho sentou-se ao meu lado e murmurou mais palavras inaudíveis. Pensei em contar piadas para alegra-lo, mas desisti da ideia. Quando ele ensimesmava dessa forma, o mais indicado era ficar quieto. Assim evitava longos monólogos acerca da utilidade da babosa no tratamento de hemorroidas ou coisa que o valha. O ônibus ainda estava em Amaralina e ele se levantou.
- Vamos descer.
- Ainda está longe, Zinho - tentei argumentar. Mas de nada adiantou: aproximou-se do motorista e pediu para parar. Talvez com receio, o motorista parou antes mesmo do ponto em frente ao Colégio Manoel Devoto. Descemos e Zinho agradeceu ao motorista com um "viva a laboriosa classe dos rodoviários".
- Já é quase uma da manhã – falei – andando não vamos encontrar mais o boteco do Bahia aberto...
- Você não entende nada de nada – disse.
Caminhamos ora rapidamente, ora nem tanto, vez que Zinho parava para recitar poemas inventados no momento. Lembro de um trecho que dizia assim:
"As pétalas não constroem a flor;
desbotam, morrem e deixam seu perfume.
Os perfumes são eternos, mas as flores carecem de mais pétalas.
Outras pétalas hão de nascer, desbotar, morrer;
As brisas espalharão um perfume de jasmim pelo ar".
- Esqueça esse negócio de pétalas, perfume etc. Vamos tomar umas doses de leite de camelo, um cravinho, ou mesmo uma cerveja. Depois vamos esperar o sol nascer na praia.
- Não – disse. Vamos direto pra praia. Lá vou declamar o poema final...
- Poema final? – perguntei, assustado.
- Tenha calma, não precisamos ir em botecos. Trouxe uma garrafa de Seleta.
Sacou a garrafa de cachaça da mochila que trazia nas costas. Já estava aberta, o líquido um pouco acima do meio. Tomou um grande gole e me passou a garrafa.
- Seleta – falei, agora mais calmo -. Uma ótima cachaça...
- Veja este poema – sacou um papel do bolso e leu:
"...Deveria súbito
Fazer-se ouvir num apartamento térreo próximo
Uma fresca descarga de latrina abrindo um frio vórtice na espessura irremediável do mormaço
Enquanto ao longe
O vulto de uma banhista (que tristeza sem fim voltar da praia!)
Atravessaria lentamente a rua arrastando um guarda-sol vermelho.
Ah, que vontade de chorar me subiria!
Que vontade de morrer, de me diluir em lágrimas
Entre os seios suados de mulher! Que vontade
De ser menino, em vão, me subiria
Numa praia luminosa e sem fim, a buscar o não-sei-que
Da infância, que faz correr correr...
Deveria haver também um rato morto na sarjeta, um odor de bogaris..."
- Não entendo muito de poesia, Zinho – disse desinteressado.
- Porra, cara. Como não entende? Esse é um poema de Vinicius de Moraes onde descreve, segundo suas próprias palavras "a graça e a nostalgia com que povoam a nossa infinita solidão". Eu só não perdoo ele ter encaixado esse rato morto na história. Ele devia falar do perfume das flores que a brisa espalha. Notadamente dos jasmins. Mínimas flores de máximos odores...
- É, só tomando uma, falei resignado...
Peguei da garrafa e sorvi mais um gole da deliciosa cachaça. Continuamos andando. Já estávamos na entrada da rua Barro Vermelho, que dá acesso à praia do Buracão, entre o Rio Vermelho e Amaralina.
- Vamos à praia – Zinho não esperou minha resposta. Adentrou a rua, recitando um poema que hoje, aqui na delegacia, me informaram que é uma música de Gonzaguinha: "Guerreiro Menino".
Ao chegar à praia, tirou toda a roupa e entrou no mar, que estava calmo. Nadou em direção a Portugal e não deve ter ouvido quando gritei.
- Cuidado Zinho. Essa praia é perigosa.
Sentei-me na areia e esperei seu retorno. Tinha certeza que ele voltaria, porque sabia ser ele um exímio nadador, portador de várias medalhas. Esperei até o nascer do sol e só então percebi que ele jamais retornaria. Em minha cabeça ainda ecoava trecho da música de Gonzaguinha que ele recitava. Não cantava, recitava:
"...Um homem se humilha
Se castram seu sonho
Seu sonho é sua vida
E vida é trabalho
E sem o seu trabalho
O homem não tem honra
E sem a sua honra
Se morre, se mata
Não dá pra ser feliz
Não dá pra ser feliz..."
Havia um delicioso cheiro de jasmim no ar.