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Aos setenta e cinco

João das Botas

Por Jorge Matos em 17/07/2023 às 13:48:32
Foto: FreePik

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A vida chega ao seu final. Sete décadas e meia e agora só resta esperar o epílogo. Ele passa a pensar no ontem. Já não haverá amanhã. Lembra-se da infância, da adolescência, dos amores e desamores. Não sente medo, pois sabe que a partida é inevitável. Ele está aqui, mas não está. Sua mente vagueia entre a fadiga e a solidão, sonhando acordado. Revê a praia deserta onde banhava-se diuturnamente, a ladeira de negras pedras onde boêmios e prostitutas desfilavam seus ócios. Enternecido, lembra-se da filha que partiu em busca de seus próprios caminhos.

- Pai, quando me formar vou embora da Bahia. E foi-se.

A mulher precedera-o no encontro com a morte. Enfisema pulmonar, disseram os médicos. Morrera entubada, entre catarro e sangue. Estranhamente, não conseguia lembrar a cor dos seus olhos. Já não importa. Foi-se. Os amigos, foram-se. Talvez haja um ou dois ainda, em algum lugar sem importância. Sente dores nas pernas, no ventre, no fígado estagnado. Olha-se no espelho, seu corpo magro, mas rígido. Seu rosto deserto. E aqueles mesmos olhos castanho/esverdeados. Tenta um sorriso. Não dá, os lábios trêmulos, vacilantes, indefinidos. Volta a mirar nos olhos: "janelas da alma", dissera alguém. Neles, há beleza. Refúgios de momentos bem vividos. Fecha-os por breve instante. Não quer lágrimas à vista. Sente um orgulho injusto por ter resistido até aqui, com o corpo magro e rígido. Dirige-se à velha cama de jacarandá. Deita-se, a esperar o encontro fatal. Adormece sonhando sonhos impossíveis, desejos reprimidos. Acorda. É manhã. Mais uma vez a morte faltara ao encontro... "Será que ainda tem torta de maçã?", indaga-se. Não, não havia. Comera o último pedaço ainda dentro da geladeira. "Não faz mal", pensa. Pedirá a Damiana que faça outra. Damiana não tarda a chegar. É de uma pontualidade exemplar, todo dia, sete em ponto. "Não sei o que seria de mim sem Damiana", murmura. Sabia sim. Teria que lavar seus pratos, fazer sua comida, arrumar sua cama... odiava lavar pratos, arrumar cama. Queria ler, mas a visão turva o impedia, desde que pisara nos óculos, esmigalhando-os. "Tenho que fazer novos óculos" pensou. "Mas pra que? Provavelmente quando estiverem prontos já terei morrido", resignou-se. O sol já ia alto no céu quando se lembrou do telefone. "Vou ligar para minha filha", pensou, animado. Pegou do celular i-phone, presente da filha ausente. Queria ouvir a voz calma e a conversa inteligente. "Mas e se ela estiver ocupada?", vacilou, como sempre. Deixou para ligar a noite. "Vou fazer os óculos sim, amanhã mesmo e se morrer antes de ficarem prontos, pelo menos não pagarei a fatura do cartão de crédito" murmurou.

- O senhor disse alguma coisa? – Perguntou Damiana.

- Não, foi um pigarro.

Sorriu internamente da própria mentira. Sabia que Damiana ia perguntar se colocava a mesa ou se ele se serviria no fogão mesmo. Há anos ela procedia assim. E a resposta era sempre a mesma: "para que por a mesa apenas para mim?". Damiana se negava a sentar na mesa "com o patrão" com quem já convivia diuturnamente a mais de 30 anos, tinha vergonha. Foi à cozinha, fez o prato, peito de frango fatiado com um molho magro de tomates por cima e arroz branco. O médico proibira gorduras. Comeu sem prazer. Mais tarde comeria um pedaço de goiabada com queijo branco, de Minas. Graças a Deus não tinha diabetes. Doença tão filha da puta que tinha quase o nome completo do diabo nela. Voltou a sorrir internamente. Pela segunda vez naquele dia. Não acreditava em Deus, quem dirá no Diabo... Depois de lavar os pratos, Damiana despediu-se com um breve até manhã. "Será? Será que haverá amanhã?", pensou. Esqueceu-se de pedir a torta de maçã. Anoiteceu. Ligou para a filha que não atendeu. "Certamente está no hospital, num desses plantões". Quedou-se inerte na poltrona. Não queria ver televisão. As imagens ressurgem do passado: a mulher, a filha, os amigos. Não adianta, tudo acaba em ausência. "Se não morrer durante o sono, amanhã pedirei a Damiana uma torta de maçã". Adormeceu...

...

Pequeno apartamento de quarto e sala no bairro do Sumaré, em São Paulo. Roupas espalhadas pelo chão, uma bagunça aceitável... Bárbara acorda sobressaltada as três da manhã. Não ligara de volta para o pai. Também o plantão tinha sido horrível. Um paciente atrás do outro. Pústulas, gargantas inflamadas, pessoas sujas. "70 por cento das doenças aqui no Brasil se resolveriam com um simples banho", pensou divertida. Também não é tanto assim,- corrigiu-se – mas que o povo carece de mais higiene, isso é incontestável.

Voltou a pensar no pai. Ele havia ligado três ou quatro vezes. Não era comum. "assim que amanhecer ligo de volta". Ligou a televisão só para ouvir algo. Não gostava da solidão, mas era o que tinha por enquanto, desde que terminara o namoro com Murillo.

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