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O Vazio

João das Botas

Por Jorge Matos em 21/07/2023 às 14:56:05
Ilustração: FreePik

Ilustração: FreePik

Parece que naquela noite Cris estava determinada a me sacanear:
- Descreva o vazio...
- O vazio, Cris? – Perguntei exasperado. O nada? O absolutamente nada?
- Isso mesmo - disse ela – olhar perdido na imensidão do mar de Cacha Pregos, ilha de Itaparica.
- Impossível – falei desanimado.
- Não faz meia hora você me disse que nada é impossível para quem ama. Estava tentando me enganar.
Fitei os olhos dela e percebi aquele brilho estranho. Parece que estava para chorar, os olhos marejados. Foi a primeira vez que senti que a amava de verdade.
- Vou tentar, Cris – Disse sem muita esperança. Vejamos, o vazio é assim como aquilo que a gente sente quando a pessoas que amamos vai embora.
- Não, besta, isso é saudade...
- É mais que saudade, é como a música que morreu em nossa memória, é algo que a gente nem imagina...
- Está chegando perto, continue.
- Você não prefere ir lá dentro tomar um pouco de caldo de sururu? Está uma delícia...
- Não, só vamos embora quando você descrever o vazio. E eu não quero imagens poéticas. Quero uma descrição.
- O vazio é o desamor.
- É uma bela imagem poética, parabéns. Mas não é uma descrição.
Aquele desafio já estava começando a me deixar irritado. Cris era uma linda mulher, baixinha, talvez um metro e cinquenta de altura, não mais que isso. Cabelos negros e lisos que chegavam no meio das costas. Sim, eu estava apaixonado.
- Vamos fazer o seguinte: vou pensar para chegar a uma resposta que lhe agrade, prometo. Agora vamos caminhar pela praia. A lua já vai sair e deve estar quase cheia.
Abracei-a e caminhamos pela praia.
- Acho que o vazio é o que a gente sente quando morre – disse Cris, sem muita convicção.
- Não vamos falar de morte numa noite tão linda. Veja, mais adiante podemos ver o Farol da Barra. E a lua já está saindo, não vês aquela luz no horizonte? É ela que vem saudar os namorados.
- Um dia os americanos vão dar um jeito de sequestrar a lua e vão impedi-la de girar em torno da Terra. Ficará parada em cima de Nova Iorque ou de Chicago e vai virar atração turística deles, só deles.
- Deixe de bobagens, Cris – falei assustado com a possibilidade.
Ela sorriu seu sorriso mais lindo e me abraçou enquanto caminhávamos.
- Sabe, bem, - ela gostava de me chamar de "bem" - a suprema alegria da vida é a de poder sonhar sem dormir... Caminhamos abraçados. A praia praticamente deserta, apenas alguns pescadores com suas varas de arremesso. Depois de caminharmos por uns 40 minutos em silêncio, sentamos para apreciar o aparecimento da lua. Linda, prateada.
- Sabe, bem, tem horas que eu acho que ninguém merece viver...
- Você hoje está estranha, Cris. Aconteceu alguma coisa?
- Não!
Aquele não foi como um "sim" retumbante. Foi então que percebi que ela chorava. As lágrimas brilhavam à luz do luar e prateavam seu rosto.
- Diga, amor – fiz-me terno.
- Deixe pra lá.
Eu sabia que o "deixe pra lá" de Cris era definitivo. De nada adiantaria argumentar. Quedei-me, calado.
- Vamos voltar - disse ela já levantando.
Cerca de um mês depois daquela noite, Cris terminou o namoro. Machista e fatalista como até hoje sou, não discuti. "Não quer, não quer". Por muitos dias esperei um telefonema que jamais aconteceu. Alguns meses depois, já "curado" da paixonite, recebi a notícia da sua morte. Câncer no pâncreas. Entendi, então, o motivo das lágrimas e de Cris ter terminado o namoro.
Hoje, passados 50 anos daquele 17 de agosto, sento no mesmo local, na mesma praia.Tenho uma promessa a cumprir; falo para a lua brilhante:
- O vazio, Cris, hoje eu entendo, é em si mesmo, uma ilusão, uma vez que todas as coisas são interconectadas e dependem umas das outras para existir. Como bem diz aquela música "eu não existo sem você".

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