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A Construção da Morte

Jorge Matos

Por Jorge Matos em 02/08/2023 às 15:22:25
Foto: Internet

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Texto baseado no conto " A Construção da Morte" de Ariovaldo Matos

Personagens:

Renato

Élvio

Luiz

Mário

André

Rapaz

Renato deve aparentar uns 50 anos, assim como Mário. Sr. Élvio, acima dos 50, se possível calvo com cabelos brancos. André uns 40 e Luiz deve ser jovem, em torno de 21 anos.

Todos se vestem esportivamente, exceto o Sr. Élvio que deve estar com calça social e camisa de mangas compridas.

Cenário: redação de um jornal. Seis mesas em duas fileiras de três (todas as mesas dispõem de lap-tops, alguns abertos e ligados, outros fechados). Um grande mapa do Brasil na parede. Quadros com temática baiana (Elevador Lacerda, Igreja do Bonfim etc).

I ATO

A redação deve estar vazia, assim permanecendo por uns três minutos. Por uma porta lateral entram Renato e o Sr. Élvio. Renato puxa uma cadeira e faz sinal para que o Sr. Élvio se sente na lateral da uma das mesas da frente. Senta-se na mesa e liga o laptop.

RENATO – (Fala pausadamente) Não se preocupe, terei tudo preparado senhor Élvio: fotógrafos, cinegrafistas, o escambau. Enquanto que o senhor, de todo o modo, deve fazer o máximo esforço para cair com o rosto voltado para cima, de preferência olhando o céu. A nuca é que deve bater contra o solo, apenas a nuca, sr. Élvio, a nuca!

Sr. ÉLVIO - Acho justo, será como o senhor quiser...

RENATO – (Pausa) Sim, senhor Élvio, veja se não me deforma este rosto. O senhor estará morto quando cair e nada interessará, eu sei disto. Mas a nós, sr. Élvio, a nós que iremos filmá-lo, fotografá-lo, descrevê-lo, a nós interessará muitíssimo. Repito: precisamos do seu rosto intacto. O senhor acha que estou pedindo demais, sr. Élvio?

Sr. ÉLVIO - Acho justo, acho justo...

Entra Luiz, foca da redação.

LUIZ - Renato, estive observando aqueles enormes tanques de combustível da Petrobras, na Cidade Baixa, bem próximo a Feira de São Joaquim. Aquilo um dia pode explodir. Imagine o estrago. Estou pensando em fazer uma reportagem, um esforço sério de pesquisa...

RENATO - (Interrompendo os devaneios de Luiz. Fala com ironia) Faça, meu filho, faça a reportagem com sua melhor consciência profissional. Apure tudo: o poder explosivo dos tanques, a provável área de destruição, um cálculo aproximado do número de mortos e feridos, uma avaliação correta dos prejuízos materiais, em reais, euros e dólares, tudo, meu filho, sim, faça a reportagem, umas oito laudas, meu filho, e depois vamos cagar juntos e nos limparemos com cada uma de suas laudas e cantaremos o Hino Nacional brasileiro, a Marselhesa, a Internacional Comunista, uma lauda pra cada hino...

LUIZ – (Demonstrando desalento) Eu só queria ajudar...

RENATO - (Fingindo paternalismo) Esqueça, filho, vá entrevistar a Claudinha Leite e dê-lhe um beijo por mim, diga-lhe que ela é bela e canta como um rouxinol. Aliás, você sabe o que é rouxinol? Óbvio que não sabe... Vá, meu filho (Empurra Luiz pelo ombro em direção à porta). Vá, vá, vá (gritando) saia daqui puto! (Luiz sai de cena assustado, quase correndo. Renato, para o senhor Élvio) O cara é mesmo um imbecil. Acha que o jornal vai publicar matéria contra a Petrobras, o Governo do Estado... me perdoe, senhor Élvio, mas não tenho paciência com tanta imbecilidade...

Entra Mário, pela mesma porta pela qual passou Luiz.

MÁRIO - (Dirige-se a Renato) O que está acontecendo aqui? Luiz passou por mim como um foguete, parecia ter visto assombração

RENATO - Não foi nada. Deixa pra lá.

MÁRIO – Você precisa ter mais paciência com os focas. (Pausa) Como estão as coisas hoje?

RENATO - Tudo tranquilo, apenas algumas escaramuças no Oriente Médio. Essas coisas de refugiados no Líbano, alguns bombardeios na Siria, outros no Iraque, o de sempre...

MÁRIO - O mesmo de sempre: Síria, Líbano, Israel, Iraque, e, obviamente o Tio Sam por trás das pendengas. Será que esses caras não têm nada pra fazer a não ser trocarem bombas e balas?

RENATO - É sempre a mesma coisa, entra presidente, sai presidente, um ditadorzinho novo aqui, outro ali, e permanece tudo igual. (Pausa) Deixe eu lhe apresentar o senhor Élvio...

Sr. ÉLVIO - (Levanta-se e estende a mão para Mário) Muito prazer...

MÁRIO - (Retribuindo o cumprimento) O senhor é o novo fotógrafo?

RENATO - (Apressa-se em interromper) Não, o senhor Élvio é um velho amigo! Ele já está de saída, não é, senhor Élvio?

Sr. ÉLVIO - Justo, acho justo. Eu já vou...

RENATO - Não esqueça das instruções, senhor Élvio...

Sr. ÉLVIO - Claro, é muito justo (sai de cena pela mesma porta por onde entrou).

MÁRIO – (Mostrando-se irônico) Qual é, Renato, velhos amigos? Desde quando você chama seus velhos amigos de senhor? Você praticamente expulsou seu velho amigo...

RENATO - Deixa pra lá, Mario...

MÁRIO - Deixo não, agora fiquei curioso. Esse cara parece um funcionário público. E municipal. Já sei, é um 'barnabé' que veio denunciar as falcatruas do nosso (fazendo gestos com os dedos indicadores e médios, a indicar ironia) queridíssimo prefeito...

RENATO - Bobagem, 'barnabé' algum teria tanta coragem. Ademais, mesmo se fosse verdade, nós sabemos que o jornal não iria publicar.

MÁRIO - Então me conte qual é a dele...

RENATO – (Indeciso, não sabe se deve ou não contar a verdade sobre o sr. Évio) Se eu lhe contar, você promete não contar a ninguém?

MÁRIO - Prometo, claro, você me conhece...

RENATO - Esse é que é o problema. Eu lhe conheço!

MÁRIO - Porra nenhuma, serei um túmulo.

RENATO - Tá bom. Meu primeiro encontro com o Sr. Élvio, aconteceu há mais de um mês, resultou de um gesto meu que os confrades mais apressados - como é o seu caso - poderiam definir como perfeitamente piegas. A rigor, se eu me jungisse a uma conduta rigorosamente profissional, deveria me restringir à condição de testemunha, permitindo-lhe consumar o fato.

MÁRIO – Fato? Que fato?

RENATO - O suicídio.

MÁRIO - Heim? Suicídio, o cara ia se suicidar?

RENATO - Um suicídio de mau gosto. Aliás, péssimo gosto. O senhor Élvio pretendia atirar-se do alto do Elevador Lacerda, à Praça Cairu, uns setenta metros abaixo. Não imaginava ele que se se jogasse da janela lateral como pretendia, cairia na Ladeira da Montanha, e não na praça Cairu. Morreria do mesmo jeito, obvio, mas a plateia seria bem menor O fato é que ele abriu a janela lateral da torre, do lado esquerdo, começou a galgá-la, desajeitado e eu então adiantei-me a tempo de segurá-lo.

MÁRIO - E ele?

RENATO - Ele não se debateu. Viu-se seguro e manteve-se quieto. Nada tentou mediante palavras ou gestos, para que eu o libertasse. Sobre suicídios, experiência de mais de 18 anos labutando com mais de uma centena de reportagens me ensinou, entre outras coisas, que há suicidas em potencial que se mostram excessivamente dramáticos. Quando são impedidos, conduzem-se exacerbados, e gritam, e esperneiam, provocando escândalos desagradáveis. Outros preferem chorar à toa, lamentam-se, xingam-se, prometem, aos berros, que nunca mais pensarão naquilo... uma baboseira! O Sr. Élvio, devo reconhecer, saiu-se muito bem. Permitiu-se delicadamente conduzido para a área contígua, onde chegava um dos ascensores e desceu comigo, em silêncio. Na verdade, nem parecia que há poucos instantes esteve quase a sentar-se no colo do capeta.

MÁRIO - E depois? Vocês desceram e ele foi embora?

RENATO - Não. Caminhamos juntos em direção ao ponto de ônibus. O Sr. Élvio aceitou o cigarro que lhe ofereci. Perguntei: é casado o senhor? "Sim - disse ele - casado e pai de três filhas". Aí eu falei: posso perguntar por que o senhor queria morrer daquele jeito? O senhor Élvio, pela primeira vez me encarando, disse: "Eu tenho câncer, senhor, nos pulmões". Você percebeu, Mário, o cara tem câncer em estágio terminal, eu lhe ofereci um cigarro e ele aceitou, sem culpas.

MÁRIO - Louco!

RENATO - Louco uma zorra! Ele já está morto, e sabe que está morto. Lá em baixo ele espiava o Elevador Lacerda de alto a baixo, como a medir a distância. Eu lhe disse: são 70 metros. Mas ele permaneceu calado. O Senhor Élvio, era óbvio, pensava no seu câncer e em sua morte. Eu me condoí dele. A princípio, desejei apontar os mastros dos saveiros na Rampa do Mercado Modelo, num esforço para animá-lo, mas recuei. Se fosse outra doença, – um torcicolo, um lumbago, mesmo uma tuberculose pulmonar – eu chegaria além de mostrar-lhe os saveiros. Levaria ele ao Mercado e, na barraca do Imbé Preto, tomaríamos umas batidas com caldo de lambreta...

MÁRIO - Lá vem você!

RENATO - (Parece não ouvir Mário) Falaria de Victória, de Lívia, de Rosa Palmeirão e mostraria onde, segundo eu imaginava, deveria ter existido, muitos anos antes, o bar 'Lanterna dos Afogados'.

MÁRIO - Você é doido...

RENATO - (Ainda sem ouvir Mário) Mas recuei, a tempo eu recuei. E maldisse meus excessos de imaginação. Um sujeito que vai morrer não se interessaria pelos mastros dos saveiros, pelos amores de Victória e de Lívia em seus caminhos do mar, nem se alegraria com a mulher porreta que foi Rosa Palmeirão. Um sujeito que vai morrer só pensa nisto: vai morrer. E bestamente estabelece suposições sobre quando e como morrerá. Esta foi a minha certeza e o silêncio do senhor Élvio contribuía para que a ela eu me curvasse. De sorte que voltei a olhar o Elevador Lacerda, as pessoas, sempre apressadas, que corriam para alcançar as cabines. Olhei-o atentamente e imaginei o trajeto que o corpo do senhor Élvio teria feito até o solo...

MÁRIO - É melhor o câncer!

RENATO - (Quase gritando) Puta que pariu, Mário! Melhor uma porra! O câncer destrói a pessoa antes de matá-la. Seria preferível um enfarto, um derrame... eu odeio o câncer! (Agora mais calmo) O senhor Elvio continuava calado. Eu pensei no bom que seria se nossos pulmões fossem feitos de bronze, imunes ao câncer. E vou dizer mais: se os cientistas odiassem o câncer como eu odeio, decerto já teriam encontrado a cura...

MÁRIO – Vamos esquecer esse negócio de câncer, suicídio. Vamos tomar umas cervejinhas no Porto do Moreira. O Roberval já me ligou, estão lá ele e Evaristo esperando por nós. E o melhor é que o senhor Élvio não vai mais se suicidar...

RENATO – Vai sim.

MÁRIO – (Cético) Você acha? Depois de um mês? Já deve ter esquecido...

RENATO – Você é mesmo um bundão. O cara vai esquecer que está com um câncer em estágio adiantado? A cada dia que passa a coisa vai piorando, muitas tosses, dores e o pior, o cara tenta respirar mas parece que o ar não entra. Imagine: você quer respirar, mas o ar não entra. Você faz força, muita força, mas a porra do oxigênio insiste em não entrar.

MÁRIO - Mas então por quer ele ainda não se matou?

RENATO - Faz parte do nosso acordo.

MÁRIO - Acordo, que acordo?

RENATO - Isso é entre o Renatinho aqui e o senhor Élvio.

MÁRIO - Cara você está louco. Vai se meter em alguma encrenca...

RENATO – (Fala com uma certa melancolia) Se o senhor Élvio vai morrer, e não há dúvidas de que ele está a um degrau da morte, temos que dar um sentido prático a essa morte.

MÁRIO - Algo me diz que você vai terminar sendo acusado por assassinato, indução ao suicídio ou coisa parecida.

RENATO – (Demonstra irritação) Acusado por quem? Quem pretender me acusar, deveria acusar antes os que constroem pequenos mundos atapetados de privilégios e fazem por não ver o que se passa além das fronteiras desse mundo. Deveria acusar os que não identificam 1.000 cadáveres misturados com as 10.000 crianças que nascem, 1.000 cadáveres que não chegaram a completar um ano de vida. 1.000 cadáveres que são entendidos como simples números num frio quadro estatístico. Deveria acusar os que já morreram! Acusar os que vão nascer marcados pelos que já morreram e pelos que hoje emporcalham o mundo. Somos todos uns porcos! Bilhões de porcos! Estamos sujando os caminhos que a Natureza nos legou. Que acusem os que se comprazem no comodismo, os que se encouraçam com a indiferença e passivamente tudo aceitam e nada contestam. Acuse você também, Mário. Acuse-os imbecil! Acuse-os!

MÁRIO – (Parece assustado) Cara você pirou mesmo. Por que não procura um médico?

RENATO – (Acalmando-se) Quando falo em dar um sentido prático à morte do senhor Élvio, eu me refiro à família. O senhor Élvio tem um espetacular momento para, conduzindo eficientemente sua partida deste mundo fétido, deixar sua família em boas condições financeiras...

MÁRIO - Agora entendi. Mas saiba que fraudar seguro é burrice. A seguradora não paga por suicídio. Se fosse dessa forma, as seguradoras todas iriam à falência.

RENATO - Mário você é um imbecilóide gigantesco. Não vamos fraudar nenhuma seguradora... nós vamos, ou melhor, eu vou é encontrar um patrocinador para o espetacular suicídio do senhor Élvio.

MÁRIO - (Rindo) Ha, já sei. Provavelmente a Coca Cola vai encher a praça Cairu com banner´s (gesticulando largamente) "não percam: no próximo sábado o grande suicídio do senhor Élvio". Anúncios na televisão: "grande suicídio no próximo sábado na Praça Cairu a partir das 17 horas. Na programação haverá também shows com Ivete Sangalo e Cláudia Leite"...

RENATO - (Demonstrando enfado) Você é mesmo um pateta.

MÁRIO – (Ainda sorrindo) Você inventa essa história de suicídio patrocinado, e o pateta sou eu!

RENATO - Ao invés de ficar aí criticando, você devia me ajudar a construir a morte do senhor Élvio.

MÁRIO - Não, meu irmãozinho, me inclua fora dessa...

RENATO - Entenda, é necessário preparar a morte do senhor Élvio nos mínimos detalhes, de modo que os benefícios alcançassem a todos. O que o senhor Élvio ia fazer, ao pular do Elevador Lacerda, era uma morte egoísta. Desespero puro, ia morrer por nada, absolutamente nada. Podemos filmar tudo, sairia nos noticiários em horário nobre dos principais jornais televisivos do mundo, ABC, NBC, BBC, Globo, SBT, Record, a zorra toda... posso fazer uma carta de despedida sem as usuais pieguices dos demais suicidas. Uma carta onde o senhor Élvio exporia todas as suas amarguras. Pela sua pobreza...

MÁRIO – (Interrompendo os devaneios) Então foi aí que você teve a idéia do suicídio patrocinado pela Coca Cola. Ou seria pela Skol?

RENATO - (Sem dar atenção ao comentário) Expliquei ao senhor Élvio o que pretendia, como o destino nos aproximou, falei pra ele: "o senhor há de concordar que eu lhe era um desconhecido, não lhe sabia da existência e o senhor, igualmente, nem se dava conta que eu existia. Vivíamos vidas diferentes. O senhor no Sul, eu no Norte, nunca nos encontraríamos". Ele apenas ouvia, impassível. Falei que, naquela noite ele ia se suicidar daquele jeito, uma bobagem, e eu resolvi segurá-lo. Impedi que ele morresse sem que nem pra que.

MÁRIO - E ele, o que falou?

RENATO - Apenas repetia: justo, eu acho justo. Aí eu falei pra ele pensar nos interesses de sua mulher e de suas filhas. Falei que ao me propor a organizar sua morte, dar-lhe uma utilidade, ao mesmo tempo eu me propunha a organizar a vida da família dele.

Entra Luiz.

LUIZ - Vocês ainda estão aqui? Essa é uma novidade... os bares estão em greve?

MÁRIO - É que o Renato está preparando...

RENATO - (Gritando) Cale a boca!

MÁRIO – (Sorrindo) É que o Renato estava me contando um projeto mirabolante para um evento com Ivete Sangalo, Carla Perez e os Beatles. Pergunte a ele que ele lhe conta. (Dirige-se à porta).

RENATO – (Segura Mário pelo braço) Peraí, Mário. Você tem que me prometer não contar a ninguém nada do que conversamos. E ninguém inclui a fofoqueira da sua mulher.

MÁRIO - Não vou contar a ninguém essa maluquice. (Saindo pela porta) E fofoqueira é a puta que o pariu!

LUIZ - Mas os Beatles não acabou?

RENATO – (Sarcástico) Acabou, mas podemos revivê-lo. Vamos ressuscitar o John, chamar o Ringo, o Paul...

LUIZ - Aqui na redação só tem maluco!

RENATO – (Apressa-se em mudar de assunto) Luiz, me diga uma coisa, o que você acha da eutanásia?

LUIZ - Cara, eu sou contra...

RENATO – Contra, por que?

LUIZ - Eu acho que só Deus tem o direito de tirar a vida.

RENATO – (Irônico) E quem deu essa prerrogativa a Deus? Você acha que Ele fica lá em cima, sentadinho na sua nuvem preferida, escolhendo as pessoas que vai matar lá em baixo...

LUIZ - Se foi Deus quem deu a vida, somente a Ele cabe o direito de tirá-la!

RENATO - Então você acha que foi Deus quem pôs você no mundo. Obviamente com uma prestativa, porém lamuriosa participação do seu pai e uma apenasmente compadecida, lúdica, plácida e contemplativa ajudinha de sua mãe. Aliás, que Deus é esse que tem tanta gente boa pra botar no mundo e prefere botar um bostinha que nem você?

LUIZ – (Bastante chateado) Não precisa vir com agressões. Você pediu minha opinião e eu a dei...

RENATO – (Imitando os 'trejeitos' de Luiz) "Você pediu minha opinião e eu dei..." deixe de viadagem, eu pedi sua opinião sobre um assunto que afeta toda a humanidade e você me vem com frescurites de Deus isso, Deus aquilo. Eu quero argumentos concretos, do tipo: sou contra porque ao abreviarmos a partida de alguém, mesmo que esse alguém esteja galopando em sentido à morte, ainda resta uma ínfima esperança de sobrevivência. Isso, claro, se a ciência fosse devotada, realmente a descobrir curas e não a criar novas doenças.

LUIZ – (Ingênuo, demonstra interesse em argumentar) Pois foi precisamente isso que eu disse. Se a pessoa está, como diz você, "galopando para a morte", sua sobrevivência seria um milagre de Deus...

RENATO – Milagre de Deus uma ova. Aliás, milagre, meu caríssimo, incontestavelmente, tapadíssimamente, patetíssima-mente idiota, é você ter sobrevivido por tantos anos...

LUIZ – (Irritado) Não dá pra conversar com você nessas bases. Se sou idiota ou não, a você não interessa. Me deixe em paz!

RENATO – (Sarcástico, aproxima-se mais de Luiz) E se eu lhe disser que não apenas sou a favor da eutanásia, como acho que essa seria uma excelente oportunidade de negócio. Poderíamos ficar ricos com uma clínica especializada em eutanásia. Os doentes terminais comprariam planos de morte...

LUIZ - Planos de morte? Que zorra é essa?

RENATO - Não existem planos de saúde? Nós lançaríamos os planos de morte. Só que ao invés do sujeito pagar mensalmente os médicos que o atenderão no futuro, eles pagariam no futuro pelo que os médicos não lhe fizeram no passado...

LUIZ - Você está brincando comigo...

RENATO - Eu não brinco com coisa séria. Você poderia ser um sócio da clínica. Poderíamos chamá-la de Clínica Dante. Imagine o letreiro em letras garrafais: (gestos largos) clínica Dante, o caminho mais curto para o inferno...

LUIZ - Você é louco! (dirige-se a uma mesa do fundo, senta-se).

RENATO - (Declamando e dançando como um palhaço de circo mambembe).

Você é louco, diz você.

Louco seria, se eu fosse

Delicadamente, como você

Digamos assim, um doce.

Entra André, dirige-se a uma das mesas e se senta, abrindo o laptop.

ANDRÉ - Boa noite a todos. Alguma novidade?

LUIZ – (Aponta para Renato) Pergunte ao Renato. Ele está cheio de idéias... Estava me enchendo o saco com uma fixação doentia sobre a eutanásia...

RENATO - Doentia coisa nenhuma. Apenas perguntei o que ele acha da eutanásia. E você, André, o que acha?

ANDRÉ - (Fazendo-se sarcástico. Ele conhece Renato) Na minha modesta opinião, o debate sobre a eutanásia se insere no amplo horizonte das ciências sociais, dedicado a esclarecer o fenômeno saúde, doença, sofrimento, sob a perspectiva teórico-metodológica da antropologia da saúde. Importa mensurar a gestão do processo do morrer pelo aparato biomédico, por considerar que tal abordagem possibilita acesso às construções de sentido para planos preeminentes de nossa cosmologia como: vida, etapas de vida, dor, sofrimento, pessoa, identidade, autonomia, família, prazer, religiosidade...

RENATO – (Divertido) Puta que pariu! O cara pirou de vez! Eu fiz uma pergunta simples e o cara me vem com estudos filosóficos da teoria da mais valia junto à discrepancia neurovegetativa do hipotálamo associada à terapia por testosterona...

ANDRÉ - (Interrompendo) Vejo que você não entende porra alguma de nada. Eutanásia, distanásia e ortotanásia não significam nada na ótica do positivismo. Tudo isso é tolice, mesmo porque as palavras isoladas não têm importância. Se uma palavra caminha sozinha, ela não vale nada. Dessa forma, inquirir-me sobre Eutanásia sem exemplificar, sem me dar conhecimento concreto do caso em voga, a mim não representa nada.

RENATO - Você se julga o suprassumo da construção do conhecimento humano. Exemplifica com Comte, sem conhecer sua obra... Mas, não importa. Sua opinião acerca da Eutanásia, para mim, significaria apenas mais um número nas estatísticas. Não teria nenhuma influência na minha decisão, que destarte, já está tomada.

ANDRÉ - A quem você se refere quando fala em Eutanásia? Tá com algum parente doente?

RENATO - Não importa...

ANDRÉ – (Ainda "curtindo" com Renato) Santo Agostinho em sua Epístola disse que "nunca é lícito matar o outro: ainda que ele o quisesse, mesmo se ele o pedisse. Nem é lícito sequer quando o doente já não estivesse em condições de sobreviver".

RENATO – (Aceita a curtição e vai para o revide) E o Papa Alexandre VI, nascido Rodrigo de Borja, pai da gostosona da Lucrécia, disse: tou cagando e andando pra isso!

ANDRÉ – (Agora falando sério, demonstra alguma simpatia por Renato) Sinceramente, Renato, tenho observado uma mudança radical no seu comportamento nos últimos dias. Mais precisamente de uns trinta a quarenta dias pra cá...

RENATO – (Tentando ser simpático) Percebo, André, uma preocupação real sua em relação à minha pessoa, e agradeço por isso. De fato, de um mês pra cá eu mudei muito. Eu me sentia irmão de todo mundo – e achava que bom mesmo, legal, bacana, pra frente, é a gente ser irmão de todo mundo, e em outros tempos, André, creia em mim, eu era irmão de todo mundo. Eu sofria e chorava pelos outros. Palavra de honra, creia em mim, eu sofria e chorava pelos outros. Recentemente, no entanto, eu percebi que ninguém, nunca ninguém olhou pra mim com ternura, com boa vontade, com empenho de me entender. Nunca, André, nunca! De repente eu me vi mais ou menos como o personagem Gregor, de Kafka...

ANDRÉ - Não vamos exagerar. Pelo menos para mim você sempre esteve longe de tornar-se uma barata ou algo parecido...

RENATO - (Interrompendo, quase com desespero) Por que, diabo, eu falei dessas coisas que pertencem ao passado? Por que, Deus do Céu, eu não me liberto do passado? Olha André, deixa pra lá...

ANDRÉ - Você parece estar depressivo...

RENATO - Depressivo? Muito pelo contrário. Hoje, agora, eu estou me sentido liberto, tal qual um passarinho...

ANDRÉ - Talvez não seja propriamente depressivo. Triste!

RENATO - Você vê minha tristeza, mas não consegue ver minha alegria. Será que você não pode compreender minha alegria? (Cantando) 'A minha alegria atravessou o mar; e ancorou na passarela'...

ANDRÉ - Você está muito triste, sim. E irritadiço. Tenta disfarçar, mas é visível...

RENATO - Sim, sim, por que não? Sim, eu confesso que estou um pouquinho irritado, mas um pouquinho só. Mas, como dizia, me sinto tal qual um passarinho, talvez um canarinho. (Evocativo) Eu tinha um canarinho. Ele cantava lindamente, um canto longe e triste e eu imaginava... – sabe o que eu imaginava? Imaginava que sobre minhas mãos tombavam as lágrimas mornas daquele manso passarinho. Mentira minha! Eu estou mentindo, até porque uma vantagem que os bichos têm sobre a gente é esta; eles não choram. Eles são lindos, não têm memória e não choram. No entanto o que de princípio eu disse é verdade: eu tinha um passarinho e, certa noite, fiz uma bruta farra e dormi e sonhei que meu canarinho se tinha transformado num imenso pavão; era pavão e era canarinho, abria a belíssima cauda de pavão e cantava o mesmo que um bom canarinho; eu me agarrava àquelas penas coloridas e voávamos, livres, por sobre a pobreza. Sim, um bom sonho. Meu primeiro sonho bom, colorido e duradouro. De manhã, quando acordei, agradecido a ele, abri a gaiola do meu canarinho e disse com muita delicadeza: voa; agora você está livre e pode voar...

ANDRÉ – (Interessado) — Ele voou?

RENATO – (Violento) Voou, claro que voou! Eu dei um senhor berro: voa, puto, voa! – e ele voou e nunca mais voltou à gaiola. Você tem um passarinho? Não, claro que não tem! Não importa que tenha ou não: onde quer que você encontre passarinhos diga a eles que na única casa de cor vermelha/ouro no bairro da Massaranduba, Salvador, Bahia, Brasil, há uma gaiola cuja porta nunca mais será fechada...

ANDRÉ – (Tentando ser simpático) Quando criança, passando férias em Maragojipe, ganhei um passarinho. Tio João que me deu. Ficava na gaiola voando de um lado para outro, até que um dia morreu. Queria voar, não tinha espaço, morreu. Nunca mais quis saber de passarinhos em gaiolas...

RENATO - Deus, se é que Deus realmente existe, cometeu um erro superlativo ao não incluir asas na nossa linha de montagem. Imagine se todos tivéssemos asas para voar. Saltaríamos do Elevador Lacerda e sobrevoaríamos a rampa do Mercado, por sobre os saveiros...

ANDRÉ -Se tivéssemos asas, não haveria necessidade de Elevador Lacerda, claro!

RENATO - Puta que los pário, André. Essa é uma idéia esdrúxula. Seria o fim de Salvador. Salvador só se justifica pelo Elevador Lacerda... E pela rampa do Mercado... Ah, sim, pela barraca de Imbé...

ANDRÉ - Vamos deixar de besteira. Acho que você tomou uma biritinha a mais hoje, está precisando descansar...

RENATO - Como diz Mário, tomar, não, que baiano não toma, baiano bebe... Na verdade bebi apenas uma cervejinha e comi seis agulhinhas brancas ao dendê. E me lembrei de meu pai: ele tinha uma receita magistral para moquecas de agulhinhas brancas. Não usava o dendê. Preferia cosê-las no azeite português, o Galo. Era um manjar. E eu sugeri ao garçom, o Bahia, que ele experimentasse a moqueca branca e ele respondeu que ia experimentar e que, quando a preparasse, me convidaria para comer em sua casa. Bahia é um bom sujeito e quando paguei fiz mais do que lhe dar uma gorjeta razoável. Desejei uma morte por enfarte fulminante, pelo amor de Deus não me aparecesse com um câncer, mas não cheguei a articular uma palavra. Tudo imaginado...

ANDRÉ - Você está deveras nostálgico. Lembrar das moquecas brancas do seu pai...

RENATO - Seguramente, se você as tivesse provado, certamente jamais as esqueceria.

Entra um rapaz e dirige-se a Renato.

RAPAZ - Seu Renato, tem um cara aí querendo falar com o senhor.

RENATO - Manda entrar, meu querido, manda entrar.

O rapaz sai e em poucos segundos entra o senhor Élvio.

RENATO - (Levantando-se, surpreso, porém solícito) Senhor Élvio, o senhor esqueceu algo?

Sr. ÉLVIO - Não, é que gostaria de falar uma coisa com o senhor... Mas tem que ser em particular.

RENATO - Claro senhor Élvio, sente-se, por favor. (Dirige-se a André e Luiz) Deixem-me a sós com o senhor Élvio. E não deixem ninguém entrar até que eu autorize.

André e Luiz saem da sala.

RENATO - Pronto, senhor Élvio, foi muito bom o senhor voltar. Esqueci de dizer que vou redigir suas cartas de despedidas. Uma para sua família e outra para divulgar...

Sr. ÉLVIO - (Interrompendo) Não, não quero que o senhor faça cartas por mim. Não vim pedir nada disso. Porque eu decidi que não me matarei mais. Eu resolvi morrer como Deus manda. Eu não quero mais cometer o pior dos pecados.

RENATO - (Incrédulo) Como assim? O senhor desistiu?

Sr. ÉlVIO - Justamente.

RENATO - Depois de toda aquela patacoada, o senhor vai desistir?

Sr. ÉLVIO - Sim, justamente.

RENATO - Já sei, sua família ficou sabendo, fez uma pressão retada e o senhor está pensando em desistir.

Sr. ÉLVIO - Não, ninguém sabe nada. (Levantando-se) Passe bem, o senhor...

RENATO - (Erguendo-se também) Então o senhor vai permitir que a doença lhe invada todo o organismo, apodrecendo-o, minuto a minuto? O senhor já viu, senhor Élvio, um homem morrer de câncer, e câncer nos pulmões, o senhor já viu?

Sr. ÉLVIO - Me disseram...

RENATO – Eu perguntei ao senhor: o senhor já viu?

Sr. ÉLVIO – Não, nunca vi.

RENATO (Pede) Sente-se, senhor Élvio, por favor. Sente-se.

O senhor Élvio se senta. Demonstra nervosismo.

RENATO - Eu já vi, senhor Élvio, ao longo de meses. Em minha casa, senhor Élvio, dia após dia, noite após noite, a tal ponto que, por piedade, mais de uma vez tentei apressar-lhe a morte. Era o meu sogro, senhor Élvio, foi terrível. Se o senhor fosse homem de posses, sua morte seria mais suave. Há remédios que eliminam ou pelo menos amenizam as dores. No entanto, custam os olhos da cara, senhor Élvio, e o senhor, pelo que sei, é um homem pobre, um bedel de colégio público municipal. Ganha pouco mais que o salário mínimo e sua mulher, pelo que o senhor me disse, costura de ganho...

Sr. ÉLVIO - Justamente...

RENATO - E suas filhas, senhor Élvio, dia após dia, veja bem, dia após dia, noite após noite, semanas após semanas, elas terão ante os olhos a morte em casa, a morte em cada minuto. A sua morte, senhor Élvio, há de marcá-los a todos. Eu repito, senhor Élvio: é uma morte terrível. No começo, e sempre, as dores lancinantes, incontroláveis. Depois o senhor entrará na fase da caquexia. A caquexia é terrível, senhor Élvio.

Sr. ÉLVIO - Caquexia?

RENATO - Não quero amedrontá-lo, senhor Élvio, mas é terrível. Na fase da caquexia as pequeninas vidas que há no senhor passam a matar-se. A vida toda, ela própria, se mata, a vida se autodestrói e o corpo todo vai afinando, sua pele ficará verdeamarelo, e nenhum milagre, senhor Élvio, nenhum milagre poderá impedi-lo. Até Deus, senhor Élvio, - se é que Ele existe - até Deus é inútil contra o câncer!

O senhor Élvio apoia a cabeça com os braços, sobre a mesa e chora.

RENATO – (Esperançoso) É bom chorar, senhor Élvio, chore. Eu sei que é duro amigo velho. Nos últimos dias tenho pensado muito na sua morte senhor Élvio. Vou espalhar várias câmeras na praça Cairu. O senhor vai sair em todos os jornais televisivos do mundo, no Youtube. Vamos ganhar muito dinheiro e sua família estará garantida...

Sr. ÉLVIO - (Enxuga as lágrimas com os punhos) Não. Deus é quem dá a vida e somente Deus tem o direito de tirá-la.

RENATO – (Irritado) Deus não tem nada com isso, senhor Élvio. O senhor acha que Deus está preocupado com o senhor? Ele, se é que existe mesmo, deve estar preocupado com as guerras espalhadas pelo mundo. Guerras que matam centenas de milhares, milhões. O senhor se acha, aos olhos de Deus, mais importante que as milhares de pessoas que nesse exato momento estão morrendo no Líbano, na Palestina, na Síria, no Iraque, na Ucrânia ou no Afeganistão?

Sr. ÉLVIO - Maiores são os desígnios de Deus...

RENATO - (Muito irritado) Não me venha com fatalismo barato, senhor Élvio. Nós temos mais é que nos revoltar contra esses desígnios...

Sr. ÉLVIO - O senhor está blasfemando...

RENATO - Uma ova. Blasfemando uma ova. Mesmo na pior adversidade, um homem deve ser um homem. Não se acovarde, senhor Èlvio, comporte-se como um homem, um lutador, não veja apenas os interesses de sua mulher, de suas filhas, olhe mais longe, senhor Élvio, olhe a Humanidade inteira. Se o senhor morrer em sua casa, sofrendo bestamente, o senhor não será mais do que um morto comum. E eu quero fazê-lo um grande morto, um morto-herói, um morto útil, um porta-estandarte das ideias mais avançadas. Sua morte será um instrumento para que, embora numa província pequena como a nossa, o senhor seja um morto de boa razão, de emoção controlada, um morto desprovido de egoísmo estúpido, um morto que possa dizer verdades puras que pareceriam ridículas na boca de um vivo. Hoje, senhor Élvio, por uma desgraça que não sei explicar, as coisas mais simples e mais belas tornam-se ridículas, ri-se dos sentimentos mais ternos. Romeu e Julieta seriam tratados aos risos, as chacotas, o senhor me entende, senhor Élvio? Venda-me sua morte, senhor Élvio, em benefício de sua esposa e de suas filhas. Creia em mim, eu a tornarei benéfica a toda a Humanidade. Vamos fazer um texto de despedida, um texto denúncia detonando a política, o judiciário. E não apenas esse judiciário brasileiro marca merda. Vamos detonar a estrutura jurídica universal...

Sr. ÉLVIO – (Interrompendo) Já decidi. Minhas filhas não terão um pai suicida a lamentar. Deus saberá o que fazer. Ele me dará forças para suportar o que está por vir...

RENATO - Senhor Élvio, por favor, ouça-me com toda a atenção possível, ouça-me. Se o senhor é capaz de se ausentar do seu problema e projetar-se distante, se o senhor é incapaz de imaginar sua morte como um tijolinho necessário à construção do amanhã, pelo menos seja capaz, senhor Élvio, de ajudar sua mulher e suas filhas, pelo menos isto. Ou então, senhor Élvio, me diga que estou errado, me convença que estou louco, ou então...

Sr. ÉLVIO - (Levantando-se e dirigindo-se à saída). Não seria justo com minhas filhas. Sinto muito...

RENATO - (Muito irritado) Senhor Élvio, antes de sair, gostaria que o senhor soubesse que no fundo eu sempre achei o senhor um merda em copas. Um sujeito comum, pior, um lúmpen a viver tão somente a unidimensional existência fisiológica, como qualquer animal. Como lúmpen o senhor jamais compreenderá que, na construção do amanhã, é indispensável alternar tapas e carícias, amor e ódio. Quando lhe propus construir uma morte grandiosa e útil, eu não pensava nos interesses imediatos de fulano ou de sicrano, sequer nos interesses imediatos de pequenos grupos, por mais circunstancialmente importantes que parecessem. Atribuo indispensável ao construtor do amanhã o não identificar rostos na multidão, mas vê-los a todos, fundí-los todos, e seja a multidão um rosto só, um sofrido rosto, e ajude-o com toda paixão, sem temor dos percalços. Além da cidade, do Estado e da Pátria. Nada nem ninguém deve impedí-lo, porque os construtores do amanhã se estão transformando na multidão, malgrado tudo, sim, malgrado tudo...

Sr. ÉLVIO - (Saindo) Sinto muito...

Pano. Fim do primeiro ato.

II Ato

A redação está vazia. Os laptops fechados. Entram esbaforidos, quase que correndo, Mário, André e Luiz. Dirigem-se a suas mesas, abrem os laptops e põem-se a escrever.

ANDRÉ - Parece o enredo de um filme de Feline. Inacreditável...

MÁRIO - Inacreditável mesmo. Jogar-se do alto do Elevador Lacerda...

LUIZ - E filmar a própria morte. Segundo a polícia haviam seis câmeras instaladas por toda a Praça Cairu. Tudo foi filmado. (Pausa) Atirou-se de costas e segundo a polícia, provavelmente com o objetivo de preservar o rosto.

Entra o rapaz, dirige-se a Mário.

RAPAZ - A polícia já liberou as cartas. Tiraram cópias e liberaram. Uma está dirigida ao jornal a outra está endereçada a você Mário.

Entrega as duas cartas e se retira.

MÁRIO - (Pega as cartas e por alguns instantes lê em silêncio, para logo depois afirmar) Pede que esta carta seja publicada.

ANDRÉ - Leia Mário.

MÁRIO - Já que é para publicar, nada impede que eu leia (Lê em voz alta): "Quando conheci o senhor Élvio (aqui ele pede que seja feito um box com uma pequena entrevista com o senhor Élvio, trabalho para você Luiz).

ANDRÉ - Mesmo na carta de despedida Renato não deixou de se portar como um jornalista...

LUIZ - Desde a visita daquele senhor, o senhor Élcio...

ANDRÉ - Élvio, Luiz. Não vá grafar errado o nome dele.

LUIZ - E onde é que eu vou encontrar esse senhor Élvio.

ANDRÉ - (Irônico) Use o seu aguçadíssimo faro de repórter.

MÁRIO - Aqui tem o endereço dele. É em Cajazeiras.

LUIZ - Porra, bem que poderia ser na Barra. Vou ter que ir no shopping, mataria duas cajadadas com um coelho só...

MÁRIO - (Voltando a ler) Se vocês me permitirem, vou voltar a ler: "Quando conheci o senhor Élvio, perdi, em certa medida, a noção do tempo. Os dias viraram horas, as semanas meses. Tempos de angústia e desespero, dias e noites terríveis ao longo dos quais, sem razões que o conhecimento explicasse, transfigurei-me, perdi a tranquilidade, o bom humor, entregando-me a prolongados momentos de solidão, essa solidão que nos conduz a olhar para dentro de nós mesmos. Era um exame turbulento, produzindo angustias, intranquilidade. E me vi apodrecido por dentro. E vi que todos somos podres por dentro. Não nos pulmões, como o senhor Élvio; mais profundamente, na alma. Não entendi porque aqueles rápidos momentos em que o conhecera tinham sido tão poderosos e tão significativos. Nada explicava a certeza com que ele me falara ao nos despedirmos na primeira vez que nos encontramos "o senhor jamais me esquecerá".

Essa é a carta de um suicida. Seria, ou melhor: deveria ter sido, a carta do senhor Élvio, mas, desde o início, em verdade, o suicida sou eu. Vocês, leitores podem considerar o suicídio como um ato de covardia. (Pausa) Creiam-me: existem momentos em que somente a morte salva, somente a morte remedia. Um homem constrói toda a sua vida acreditando numa certeza, a ela se sacrificando, matando sentimentos profundos, sufocando desejos, justificando erros. E, de repente, todo o mundo que construía, no plano das ideias explode. A certeza era uma farsa. Talvez um cínico, diante de tal problema, dissesse "bem, amanhã é outro dia..." Talvez um calculista frio, mestre na análise de sentimentos e imune a paixões pesasse, um a um, todos os aspectos do problema, considerasse suas causas e suas consequências, permitindo-se uma autocrítica percucientíssima, no fim do que se consideraria disposto a outra, repetindo Camões: "muda-se o ser, mudam-se as substâncias". Eu não. Porque sou como o poeta, eu sou todo coração. Sei que muitos pensarão: "era um louco". Talvez seja mesmo, não importa. Li outro dia um artigo na Tribuna da Bahia onde ou autor dizia que o mundo está dominado pelas ideologias materialistas e fundamentalistas, as religiosas, as políticas e as econômicas, repetindo os imperadores e os do templo que mataram Jesus e pouco ou nada mudou desde então e as massas ainda são tratadas como gado a caminho do matadouro. E isso é verdade. Somente existe democracia e liberdade com o livre pensar, questionar, meditar, filosofar, viver a vida conforme o livre arbítrio de cada um. Os caminhos são individuais e conforme o esforço e o mérito de cada algum para conseguir a evolução. Ainda segundo o artigo, não existiam chefes ou donos ou doutores da lei que são coisas dos templos dos homens. Havia somente a autoridade moral e os homens viviam em grupos fraternos. Mas agora na nova era as trevas ou os soberanos usando ideologias para terem tronos não conseguirão mais impedir que a verdade ou a luz acabe chegando as massas em todo o mundo libertando os cidadãos a caminho da democracia e liberdade efetivas. Ao tempo das auroras puras. Acontece, caros leitores, que as mídias estão dominadas. As pessoas não têm acesso às informações como deveriam ter. Esse meu gesto, o suicídio, tem o objetivo de denunciar essa engrenagem. Somente através deste tresloucado gesto vocês terão acesso a essa carta. E poderão pensar. E é exatamente isso que assusta eles, a possibilidade das massas pensarem. Não se guiarem pelas novelas e outros programas televisivos que têm o objetivo único de emburrarem as pessoas. Dirão que sou louco, bem sei. E isso me faz lembrar do sanatório onde me internaram. Tinha eu 20, 21 anos no máximo. Os médicos compunham-se graves. Enfrepelavam-se com suas túnicas brancas, de linho eram as camisas e escuras, quase sempre, as gravatas. Sobre nós despejavam, as carradas, um palavrório idiota; ameaçavam-nos com choques elétricos; com agulhas furavam-nos os braços e as bundas; goelas a dentro, gritando "engulam! engulam!", enfiavam-nos pílulas e poções; e de noite, ao dormirmos, eles nos espiavam como se fôssemos animais. Então eu me lembrava do cavalo que tínhamos na roça. De noite, ele na estrebaria, meu avô me chamava para vê-lo. "Roxinho", chamava-o com ternura, sem receio que eu o achasse ridículo. Já morreram, meu avô e Roxinho. Quando nos espionavam, de noite, os médicos não demonstravam mínima ternura. Talvez eles temam o ridículo. Somos coisas e eles são máquinas. Faziam-nos perguntas absurdas. Alguma vez, em minha infância e em minha adolescência, eu bisbilhotara, com luxúria, minha irmã? Expliquei que nunca tive irmã, nenhuma irmã. E minha mãe, adiantei-me em explicar, morrera quando nascemos, eu e meu irmão gêmeo, agora em São Paulo, engenheiro. De certo modo, matamos minha mãe, mas não tivemos culpa. Eclâmpsia. É uma estupidez, coisa mesmo de científicos, gastar palavra tão linda com doença tão miserável.

Temo me alongar muito nessa tentativa de explicar meu gesto, mas, de fato, a explicação é só uma: de repente descobri-me doente. Uma doença terrível e incurável: câncer na alma.

ANDRÉ - De fato, não há muito para entender. Renato estava desequilibrado mentalmente. Pena. Apesar de tudo, era um excelente jornalista.

MÁRIO – Deixe eu terminar de ler.

LUIZ – Vá, Mário, continue...

MÁRIO – Vamos lá (): o mesmo câncer que destrói as esperanças pelo tempo das auroras puras. Lutamos uma vida inteira contra a miséria e a opressão. E o que conseguimos? Mais miséria, mais opressão. Incutiram-nos o vírus do consumismo desenfreado. Vivemos para consumir, consumir, consumir. As pessoas já não se importam com o semelhante. Milhões morrem anualmente vitimados por balas assassinas apenas para aumentar os lucros das fábricas de armamentos. As curas de várias doenças ainda tidas como incuráveis são negligenciadas por falta de pesquisas dos laboratórios. Curar doenças não aumenta os lucros da indústria farmacêutica. Novas doenças como o Ebola e a Aids são criadas em laboratórios do primeiro mundo e inoculadas nos povos mais pobres. Guerras são fomentadas por interesses comerciais. E nós jornalistas nos limitamos a escrever nas costas dos anúncios para que os nossos patrões enriqueçam ainda mais. O fato é que existe um livro a ser escrito pelas pessoas que estão ao lado do bem. Você que está lendo essa carta, é para você que eu imploro: escreva você! Seja o porta-voz do tempo das auroras puras.

A tudo isso eu digo basta! Eu digo não!

LUIZ – Acabou?

MARIO – Sim, acabou. A outra carta está dirigida a mim.

LUIZ - Leia, talvez esclareça tanta maluquice...

ANDRÉ - Respeite a memória de Renato. Ele tinha todos os defeitos do mundo, mas no fundo era um bom sujeito.

LUIZ - Homofóbico, isso é o que ele era...

MÁRIO - De jeito algum, Luiz. Renato sempre se destacou na luta contra os preconceitos. Vou ler a carta. Se houver algo que não possa ser dito, eu paro e ponto.

LUIZ – Apesar do comunismo dele, até que eu não o odiava...

ANDRÉ – Apesar do comunismo dele?! Que idiotice é essa?

LUIZ – Ele nem acreditava em Deus...

ANDRÉ – Deixe de bobagens...

LUIZ – Por mim, tudo bem. Ele que ficasse com o ateísmo dele. Agora está prestando contas ao demo!

ANDRÉ – Pelo menos em uma coisa ele tinha razão: você não passa de um idiotinha de segunda classe.

MÁRIO – (Interrompendo a discussão) Minha gente, leio ou não a carta?

ANDRÉ - Leia Mário. Estamos todos curiosos.

MÁRIO - (Põe-se a ler) Para ser entregue a Mário, redação do jornal Folha de Salvador. (Lê pausadamente) Mário, começo essa carta lembrando aquele dia em Itapuã, quando tomamos aquele porre indescritível. Ainda vejo sua imagem subindo no capô do carro de sabe-se lá quem a gritar: "camaradas, companheiros e companheiras do Planeta, posso afirmar, calcado na certeza do marxismo-leninismo científico, que de hoje em diante para todo o sempre a paz amada, sonho superior da Humanidade, será assegurada a todos os povos do mundo" e prosseguiu seu discurso partidário da paz, da justiça social e do amor moralizado. Éramos então dois jovens idealistas estudantes de jornalismo. Hoje, tantos anos passados, impotente, cheguei a conclusão de que nunca, de fato, combatemos o bom combate. Pior, não fomos derrotados, fomos comprados. Nós, como jornalistas, temos que cumprir a missão que nos foi confiada. E essa missão não é apenas cobrir de letras as costas dos anúncios. Você sabe do que estou falando. Faltou-nos coragem para assumirmos nossos destinos. Vendemo-nos por muito menos que as trinta moedas de Judas. E por isso estamos podres. Sei que estamos podres. Com câncer na alma.

Quanto a opção pelo suicídio, é possível que eu não lhe tenha dito nada sobre a fazenda do meu avô. Eu devo, porém, fazê-lo. Para você, tudo permanecerá às escuras se eu não falar de alguns episódios daqueles tempos, especialmente se eu não falar sobre a morte do cavalo. O cavalo se chamava Roxinho. Era um belo e poderoso animal. De noite, Roxinho na estrebaria, meu avô ia vê-lo, gostava de admirá-lo, e eu acompanhava meu avô. Era com ternura que nós o olhávamos. Porque estávamos sozinhos, não tínhamos medo de a nossa ternura tornar-se ridícula diante dos outros. Permanecíamos 15, 20, às vezes 30 minutos, a espiá-lo e Roxinho, como que compreendendo a nossa alegria, fazia-se alegre também, espichava-se elegantemente, os olhos a faiscar de contentamento. Desgraçadamente, eles já morreram, meu avô e Roxinho, já morreram, estão além e muito além das construções metálicas do mundo, além do mar e da terra, mas me legaram memórias e eu valorizo cada uma dessas memórias. Meu avô poderia ter dito – e talvez o tenha feito – que nada humano lhe era estranho. Eu não lhe era estranho. Roxinho não lhe era estranho. Na fazenda, uma manhã, ouvi o barulho de um tiro de carabina. De repente, aquele tiro de carabina. E então eu corri e encontrei meu avô junto ao cavalo caído no chão. O cavalo, Roxinho, ainda sangrando, estava morto. Meu avô o matara. Com a carabina, um tiro apenas, um tiro desferido com toda a técnica, ele matara Roxinho. Eu me atirei contra meu avô, a chutá-lo, a bater-lhe na cara, a chamá-lo de assassino, de mentiroso. Eu disse: "o senhor o odiava e eu acreditava que o senhor o amava tanto quanto eu, e o senhor o matou, o senhor é um monstro! é um monstro! é um monstro!" Estas palavras, monstro, assassino, assassino, monstro, eu as repeti inúmeras vezes, e eu chorava, chorava muito, chorava... Calmo, meu avô me explicou que Roxinho quebrara as patas dianteiras. "A quem serve um cavalo com as patas quebradas", disse ele, "nem a ele próprio", definiu meu avô.

Agora, gostaria de pedir um favor: quando vocês forem ao Porto do Moreira ou ao Imbé Preto, lembrem de colocar um copo com cerveja na mesa para mim. Como vocês bem sabem, não acredito em outras vidas, mas, por via das dúvidas... Aproveito também para sugerir que na minha lápide conste apenas a frase: "Aqui jaz um contestador que, apesar de também estar com câncer na alma, não aceitou ser indiferente".

(Em BG ouve-se a música de Geraldo Vandré 'Caminhando e cantando e seguindo a canção...')

F I M


Se você gostou do texto, o que demonstra um péssimo gosto, ajude o João das Botas com qualquer valor através do Pix 71994062444 (Lara Castro Matos) ele argumenta que precisa trocar os óculos.
Ass: O Editor

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